Ter um patrocinador em comum com a Transalpine foi algo que selou a escolha do desafio do ano: a Transalpine Run, uma prova em 8 estágios de corrida de montanha com 15 mil metros de ascensão acumulada atravessando os Alpes, passando por três países Alemanha, Austria e Itália.
A Transalpine Run é uma competição internacional muito popular e seis meses antes da prova as vagas já estavam esgotadas. Tivemos todo o apoio da Suunto para que nosso desejo se tornasse realidade e com sua ajuda foi possível garantir uma vaga para a única equipe brasileira da prova.
O percurso - Largando de Ruhpolding na Alemanha, passando pela Áustria e terminando em Sexten na Itáila, o percurso de 320 km foi o mais exigente e longo de todas as edições anteriores. Trezentos e vinte quilometros em oito dias, uma média de 40 k e um acumulado de ascensão de quase 2 mil metros. No final da prova teríamos "escalado" quase dois Everest.
A dupla Flower People - A Dri e eu, temos um currículo recheado de competições em estágio de mountain bike e tínhamos apenas o "Cruce de los Andes" de amostra do que podería ser a Transalpine.
Essa foi a nossa sétima prova em estágio que competimos juntas, é incrível a sinergia que temos. Somos muito parecidas e mesmo tendo treinadores e treinamentos diferentes, mesmo morando em cidades diferentes e não treinando juntas, os nossos ritmos se alinham. A partir do segundo dia o que uma pensa a outra fala e vice e versa. Fórmula extremamente necessária para o sucesso; a dupla precisa ter o mesmo objetivo e acima de tudo saber respeitar-se.
A "encrenca" - Mesmo olhando as altimetrias e estudando um pouco do que nos aguardava, nós só percebemos onde estávamos nos metendo após o primeiro dia de competição. A primeira etapa começou com 50 Km, a mais longa de todos os dias. Largamos muito ansiosas e aflitas com a temperatura. O dia estava frio, a Dri e eu somos bem calorentas e vendo muitos atletas altamente equipados ficamos com medo. Parecíamos amadoras. Antes da largada esquecemos tudo o que já sabíamos sobre nós mesmas.
A largada foi um alívio, agora era colocar tudo o que tínhamos treinado em prática. Não tem um dia fácil de prova. Todas as etapas foram técnicas, com corridas em trilhas, com pedras, raízes, algumas com trechos guiados por corda e muita subida.
Após as 8:40 hs que levamos para finalizar o primeiro dia, percebemos que o desafio seria mais exigente do que imaginávamos. Nossos dias ficaram curtos; resumiam-se em deixar a mala na recepção do hotel, largar, correr em média oito horas por dia (nosso tempo total de prova foi 66 horas), cruzar o pórtico, descobrir aonde era o nosso hotel, tentar dar notícias de vida, ir na festa de premiação, comer e descansar para começar tudo novamente no dia seguinte.
A partir do terceiro dia eu brincava que a prova parecia uma mesa de bar: o mais resistente ficava em pé. Depois do quinto dia a gente já a comparava com um campo de batalha: atletas mancando para todos os lados. A fila da fisioterapia na largada era algo interminável; nem imagino quantos metros de Knesio Tape foram usados.
No sexto dia 40% das equipes já estavam fora da prova. Das 300 equipes que largaram apenas 178 continuavam classificadas. No ultimo dia de prova, das 23 equipes femininas, apenas 10 sobreviveram à Transalpine. A medida que os dias foram passando e nós resistindo, subíamos de posição e assim ficamos com o oitavo lugar.
A nossa experiencia em competições de endurance nos deu vantagem. A estratégia desde o começo foi encarar cada dia com calma, tentar estabelecer um ritmo, fazer com que as paradas nos pontos de água fossem rápidas e eficientes para que não fossemos pegas pelos cortes (horário limite de passagem nos abastecimentos). Tiveram equipes que ficaram fora da prova porque passaram 3 minutos depois do horário limite. Nós passávamos normalmente com uma hora de antecedencia antes dos cortes e nos dias mais curtos essa folga diminuia. Portanto o segredo seria gerenciar nosso tempo e tentar minimizar a chance de sofrer lesões, já que a cabeça e o corpo estavam treinados.
Levávamos vantagem em relação ao grupo nas partes técnicas - em terrenos com pedras grandes e piso irregular. Nos primeiros dias de prova também ultrapassávamos muitas pessoas na subida, mas esses super poderes se esgotaram a medida que os dias foram passando.
Meus joelhos foram ficando muito prejudicados com o acumulado de descidas. Quem inventou o ditado "Para descer todo Santo ajuda, certamente não tinha joelhos." A Dri teve problema em um de seus tornozelos e com duas de suas unhas, mas a ordem era essa: "Não vale a pena reclamar! O sofrimento é passageiro." Já sabíamos que iríamos ter que conviver com a dor, então fazíamos com que as nossas risadas a abafassem.
Houve dias em que não tínhamos nem tempo de ir tomar banho e tínhamos que ir direto para o jantar. Houve dias em que não conseguíamos ficar em pé após a etapa. Uma montanha russa de emoções. Momentos de muita alegria ao cruzar os pórticos de chegada seguidos de insegurança e medo: "Como iremos ter forças conseguir correr amanhã?"
De uma maneira mágica e inexplicável, o corpo melhorava e no dia seguinte conseguíamos sair correndo. Nossa força de vontade nos levava adiante, estou convencida que não foi com os pés que vencemos 320 k, mas com a cabeça. Queríamos com cada célula dos nossos corpos completar o desafio.
O apoio que tivémos de todos os amigos e família foi fundamental. Todos os dias de manhã escrevíamos em nossos corpos os nomes de todas as pessoas que nos incentivaram e mandaram comentários para o blog. Era como se estivéssemos correndo com todos os nossos amigos durante a prova.
O astral brasileiro encanta a Europa. O coração aparentemente frio dos alemães acabou amolecendo após alguns dias de prova: com palhaçadas, uniforme Pink, capas de super heroínas, alto astral e a nossa dancinha (ridícula) na chegada conseguimos arrancar finalmente sorriso de todos. Um dia fomos eleitas as heroínas da trilha (todo dia alguém era escolhido), porque como nos disseram: nos momentos difíceis continuávamos sorrindo, e mesmo com o dobro (ou mais) de tempo de prova dos líderes, sempre cruzávamos a meta com alegria contagiante!
Dura e exigente, a Transalpine Run foi uma experiencia das mais intensas e belas que tive na vida. O presente é muito real e o sofrimento potencializa a vivência. Talvez cruzando as montanhas eu tenha tido esse insight. "É isso: O sofrimento aguça os nossos sentidos, nos torna mais emotivos, com a emoção à flor da pele. As cores ficam mais vivas, a beleza mais definida e a experiencia mais marcada."
Correndo podemos chegar onde nem a bicicleta nos leva: a lugares inóspitos, cercados pela natureza e montanhas gigantes que nos tornam pequenos e pequenas, mas de alma cheia derrubamos lágrimas pelos lugares lindos que passamos. Emocionadas e tocadas pela natureza, não foi difícil agradecer ao privilégio de estarmos vivas e lá no alto dos Alpes estávamos sussurrando isso no ouvido de Deus! LIFE IS GOOD!
Luli Cox
Flower People
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