Uma mente aventureira vaga pelas imensas vastidões de natureza selvagem quando escuta a destinação Patagônia. Geleiras, estreito de Magalhães, fiordes sem fim, vento, montanhas e mais montanhas de pedra e gelo.
Assim sempre foi pra mim, pelo menos. Já havia explorado algumas áreas patagônicas, mas quando em maio deste ano o Caco da Selva me ligou convidando para a Patagonia Expedition Race (PER), um grande frio na barriga misturou-se ao orgulho de estar lado a lado com uma lenda das corridas de aventura no evento mais espetacular e temido da terra.
The Last Wild Race, assim é conhecida a PER. Nos seis meses seguintes minha obsessão foi estar bem preparado e equipado para fazer parte desta grande aventura. A rotina de trabalho pela Brou Aventuras acabou evitando que eu chegasse à Punta Arenas na melhor forma física, mas mentalmente eu estava (mesmo?) preparado.
Além do Caco, da Selva, juntou-se à equipe minha semi-irmã Marianinha e de última hora, substituindo o Phil Campello (ausente por razões de trabalho), apareceu a grata surpresa Rafa Melges! Esse era nosso time, a minha família para encarar o que, sem dúvidas, imaginava ser o maior desafio da minha vida de aventuras, iniciada lá pelos idos de 1986 com os acampamentos selvagens com o grande Vavá na querida Serra do Cipó.
1 – A viagem e o pré-prova
Dia 13 de novembro embarquei em um calor infernal em BH rumo à Punta Arenas, cidade mais austral do Chile e porta de entrada para uma das regiões mais inexploradas da Patagônia. Aqui também é a sede, desde o começo dos anos 2000, da PER.
Chegamos numa manhã gelada no aeroporto eu e Caco (Marianinha e Rafa nos encontrariam 2 dias depois) e esperamos pela carona do grande amigo local Paulino, que esteve com o Caco nas 2 vezes que ele competiu por aqui. Paulino é um ativista ambiental e ciclo viajante muito gente boa e prestativo, e logo já o considerava também parte da equipe.
Fizemos as compras de comidas necessárias para a prova (uma logística imensa é necessária para tudo funcionar perfeitamente durante os dias da PER), revimos alguns equipamentos que precisaríamos comprar em Punta Arenas e demos umas voltas de bike encarando o vento e o frio da cidade. Logo a equipe se completou e terminamos as partes burocráticas da competição e aí era esperar a largada.
2 – Largada de Trekking – 55km em 31h
Na 2ª feira à meia noite saímos as 10 equipes de 4 pessoas em um ônibus rumo norte, na estrada que liga Puerto Natales ao famoso e incrível Parque Nacional Torres del Paine. Tentamos dormir ao máximo no ônibus, aproveitando um descanso que nos seria negado ao longo dos próximos 10 dias.
Às 5h45 chegamos no meio do nada para a largada. Fazia bastante frio. O local era simplesmente um terreno vazio em frente a uma lagoa enorme (Lago El Toro) e ali estava a organização para dar início à aventura.
6h15 estávamos todos ali reunidos e fizemos a contagem regressiva e de repente, após meses de preparação e ansiedade, estávamos finalmente em movimento. 100 metros depois da largada encaramos o primeiro de vários trechos de vara mato (locais onde temos que progredir sem trilhas ou caminhos, avançando por entre a vegetação) que já deixou todo o grupo embolado.
Ficamos um pouquinho para trás e quando vimos de novo, já estávamos sozinhos. Esta seria nossa realidade por quase toda a prova: encontramos muito raramente outra equipe na imensidão que nos cercava. Cada time parecia viver dentro da sua própria bolha, lutando para sobreviver e avançar.
A mata estava muito molhada da chuva e em pouco tempo estávamos encharcados e com frio. Fomos avançando entre florestas que pareciam nunca ter sido pisadas por nenhum ser humano, buscando sempre as cristas (partes altas) para tentar evitar a vegetação mais fechada dos vales.
Depois de umas 3 horas de sobe e desce, chegamos finalmente à linha da neve, e neste mesmo instante praticamente começou a nevar. Continuamos subindo, escalando semi paredes de neve virgem até que os 3 homens da equipe pediram para parar e ver o que estava acontecendo com nossos pés, que tinham logo nesse começo da prova sensação de congelamento. Trocamos as meias, colocamos cobertor de sobrevivência o redor dos pés e seguimos. Caco deu mostras logo no início que iríamos fazer uma prova de orientação muito bem feita, pois seguimos o tempo todo sem ter que dar nenhum passo atrás. O avanço era lento, mas inexorável.
Depois de umas 9 horas sem trilha entramos finalmente numa área com um caminho, mas que durou pouco: era hora de escalar uma parede ao lado de um fenomenal cânion para acessar o PC num colo entre montanhas nevadas.
Anoiteceu logo que passamos o PC e descemos um último vale antes de voltar pra trilha e seguirmos caminhando a noite toda até uma última travessia de montanha na neve e desta vez usando os crampons (cravos de alumínio que acoplamos nos tênis, chamados corretamente de “micro spikes”) e aí uma última descida longa até a 1ª transição pra bike. Nesta descida os pés se aqueceram depois de 15h de gelo e as dores nas extremidades me fizeram chegar caminhando com muita dificuldade na transição. Estávamos em 4º, 1h atrás dos japoneses.
3 – Transição e bike de 117km – 12h
Fizemos a transição da maneira como planejamos e menos de 1 hora depois de chegarmos saíamos nas bikes felizes da vida por dar uma aliviada nos esforços do trekking. A bike era meio monótona, mais um deslocamento mesmo.
Passamos direto por Puerto Natales e pedalamos ao longo do mar e contra o vento um bom tempo até entrarmos numas estradinhas interiores mais interessantes. Nossa ideia era ir até a Transição para dormir, mas no km 85 senti muito sono e pedi pra equipe para antecipar nossa parada. Montamos pela 1ª vez as barracas e dormimos por 2 horas. Acordamos e seguimos caminho até a transição, onde chegamos em 5º aproximadamente umas 2h30 da manhã.
4 – Trekking 47km – 30h
Fizemos mais uma vez uma boa transição, com alimentação quente e reposição das comidas pro longo trekking que íamos encarar, e começamos a jornada. Mais uma vez já começamos varando mato, desta vez num terreno que se tornaria muito familiar ao longo dos dias: a turba.
Trata-se de um tipo de vegetação esponjoso que retém muita água, fazendo os pés afundarem e encharcarem em cada passo. Resumindo, um pedacinho do inferno na bela Patagônia chilena.
Amanheceu e estávamos no meio de um alagado, tipo o Pantanal, com belas montanhas ao longe, e este longe era exatamente nosso destino.
Obstinados, seguimos o dia inteiro “trekkando”, cantando um pouco e fazendo pequenas paradas para descansar os pés e comer melhor. A pressa é inimiga na Patagônia.
Depois de descer um acentuado degrau no relevo, chegamos no vale de um grande rio cheio de afluentes e tivemos grande dificuldade em encontrar as melhores passagens até o fim, num grande lago. Neste momento da prova o Caco cometeu seu único erro de navegação do percurso inteiro, seguindo por um riozinho para uma direção que não era a nossa.
Menos de 1h depois já estávamos no rumo certo e de repente nos deparamos com uma estranha cena: uma equipe!! Os irlandeses estavam sem mochilas voltando no caminho procurando pela barraca que tinham perdido. Conversamos muito rapidamente e prosseguimos no entardecer.
Quando escureceu as dores na minha tibial estavam tão grandes que eu quase não conseguia andar, e pedi novamente pra equipe para acamparmos. Dormimos a noite toda e na manhã seguinte a dor persistia, mas como não tinha outra coisa a fazer, seguimos caminho.
Atravessamos um rio principal com trechos de mata muito fechados e quando atingimos o platô do outro lado já pudemos ao longe avistar o mar, que era nosso destino. Resignados, seguimos descendo a serra pela turba até chegar a uma estradinha (coisa rara) e daí na transição, onde estavam os franceses. Chegamos na 6ª posição, fizemos uma transição eficiente e saímos em 5º.
5 – Bike de 150k – 10h
Agradecemos outra vez por estar nas bikes e mais ainda pelo vento a favor nos primeiros 80km do percurso, que nos fez andar a uma média de 25km por hora. No entardecer deixamos a estrada e começamos a pedalar pela praia até uma grande mina de carvão, onde entramos mais uma vez em estradas interiores. A noite chegou e com ela um frio glacial, e a tentativa de uma parada para cochilar foi abortada pelos tremores do corpo gelado.
Voltamos a pedalar, encontramos outra vez o mar e nos restava ter paciência para chegar a transição, às margens do Rio Canelo.
Chegamos por volta das 3h da manhã e dormimos na fria barraca da organização até amanhecer. Era hora de encarar o anunciado monstro pra prova: o trekking de 100km.
6 – Trekking de 100k – 74h
Amanheceu frio, mas com céu azul e logo molhamos nossos pés para cruzar o rio Canello e seguir rumo ao desconhecido. Ficar 3 dias num trekking era uma experiência inédita pra mim e as dores que eu vinha encarando há 3 dias me deixaram preocupado com relação às minhas possibilidades de sair do outro lado.
Trekkamos, trekkamos e trekkamos. Atravessamos florestas, descemos e subimos mil ravinas íngremes, atravessamos inúmeros rios, escutamos gritos de animais selvagens, encaramos ventos de mais de 60 km por hora, andamos na neve, em cristas e cumes, e ainda estivemos em alguns momentos acima de um arco íris fantástico. Mesmo assim ainda estávamos no 1º dia do trekking.
Na 1ª noite a pior chuva da prova caiu sobre a gente e caminhamos encharcados até anoitecer buscando lugar para acampar, mas o que restou foi mesmo a encharcada turba. Deitei sem comer nada, com a barraca ensopada e o saco de dormir logo estava molhado também. Noite infernal sem dormir e tremendo de frio o tempo todo. Amanheceu ainda chovendo, e nos apressamos para desmontar o acampamento para esquentar os corpos com o movimento da caminhada.
Depois de andar às margens de um lago com águas revoltosas pelo vento, o sol saiu e tiramos tudo das mochilas para secar. Fomos andando com barraca e saco de dormir pendurados, e percebi que estávamos numa jornada parecida com a de Frodo Bolseiro e sua Sociedade do Anel. A nossa era a Sociedade da Sobrevivência.
No fim deste dia acampamos mais uma vez, desta vez em condições ideias e tentaríamos fazer os 35km restantes do trekking no dia seguinte sem dormir. Acordamos cedo, às 04h e às 05h já estávamos na rota. 1h30 depois um desafio inesperado: atravessar nadando um grande rio semi congelante.
Tiramos as roupas, colocamos tudo que coube nos sacos estanque (sacos impermeáveis) e o Caco puxou a fila. O rio era correntoso e a idéia era nadar a favor da corrente para atravessar o mais rápido possível.
Desta vez a sorte estava com a gente e o rio dava pé (quase não deu pra Marianinha) e apesar de gelados do outro lado, colocamos logo nossas roupas quentes e já ganhamos o trecho outra vez.
Passamos o dia obcecados em terminar o trekking e mais ou menos às 18h avistamos o Monte Tarn, gigante de neve e pedras que era nosso último obstáculo antes de voltar ao Estreito de Magalhães para os trechos finais da prova.
Começamos a escalada e a visibilidade reduziu muito num trecho de vegetação bem difícil, e apesar das ganas de seguir, achamos prudente parar pra dormir à 1h30.
Amanheceu e logo estávamos no caminho certo, subindo o Tarn para curtir as vistas maravilhosas lá de cima. O vento gelado logo nos pôs a caminho novamente e às 10h da manhã de quarta feira, depois de uma descida cheia de lama chegamos à praia. Minha perna estava latejando tanto que fiquei meio paralisado, sem saber o que fazer. Comemos muito, nos hidratamos e começamos a colocar os trajes secos, roupa obrigatória para a canoagem.
7 – Canoagem de 40km no Estreito de Magalhães – 6h
Foi um alívio para as pernas finalmente chegar ao trecho de canoagem. O vento estava levemente a favor e foi gostoso remar nas águas geladas do estreito. Vimos alguns golfinhos, fizemos paradas no mar mesmo para alimentar-nos e seguimos adiante, meio dormindo e meio remando.
Nos trechos de remo em expedições normalmente é muito difícil controlar o sono e tentamos nos distrair inventando assuntos e cantando. Ao entardecer finalmente vimos a transição e nos arrumamos para rapidamente sair para a bike. A prova estava acabando e já estávamos no limite do que tínhamos para oferecer de esforço.
8 – Bike com 32km de subida – 3h20
A bike não tinha – mais uma vez – dificuldades de orientação, mas era uma subida quase constante desde a praia até o Cerro 3 Morros, 3 gigantes de neve e pedra que marcariam as últimas seções da prova.
Subimos num ritmo bom e chegamos à transição exatamente quando a noite caia. Apesar da vontade de prosseguir, decidimos dormir uma última noite para fazer o trekking final mais inteiros. Dormimos na barraca da organização depois de comermos nossas últimas refeições mais substanciais. O dia seguinte era tudo ou nada.
9 – Trekking Final 34km – 17h
Acordamos cedo e às 4h40 já estávamos caminhando. Seguimos a dica do staff de não ter que escalar os 3 Morros e contornamos por um vale. Foi bom para evitar a escalada, mas nos tirou da direção certa a seguir.
Perdemos um pouquinho de tempo mas logo estávamos no rumo desejado. As horas iam passando e a distância não parecia diminuir muito, e logo começamos a temer por mais uma noite selvagem. Às 14h chegamos a uma estradinha que parecia promissoramente levar à chegada, mas a ilusão durou pouco. O azimute da estrada era contrário ao que precisávamos ir e o jeito foi subir a serra final do jeito que nos acostumamos a fazer na última semana: varando mato.
Neste trecho encaramos umas das partes mais difíceis de vara mato, com a vegetação dura da Patagônia castigando nossas pernas já tão fustigadas.
Às 17h finalmente estávamos no cume vendo de perto as antenas onde era a chegada, e fomos premiados por uma trilha (!!!!) no meio da turba que com o resto de paciência que tínhamos nos levou até a chegada.
Foi meio inacreditável ter finalmente chegado, depois de passar a semana duvidando que a dor me deixaria completar esse sonho de ser finisher de uma das expedições mais duras da terra.
A pizza e o carinho com que fomos recebidos nos deixaram pela 1ª vez em 8 dias e 15 horas, mais próximos dos esperados confortos da civilização com que tanto sonhamos ao longo da prova.
10 – Pós prova e perspectivas de futuro
Os pés estão em situação crítica, inchados e extremamente doloridos pela tentativa da volta normal da circulação sanguínea pelas extremidades do corpo, depois de dias e dias de frio e privação. Caminhar pela cidade está meio difícil, e tudo que queremos é ficar deitados no sofá curtindo o aquecimento artificial da casa onde estamos.
Acordo ainda sobressaltado com a necessidade de prosseguir a prova, de sair da transição ou de atravessar um rio gelado. Mas as imagens e experiências que vivenciamos nestes longos 8 dias na natureza selvagem jamais sairão dos nossos espíritos indomáveis.
Ninguém hoje quer falar das próximas expedições, mas sabemos que no fundo da alma algo foi plantado aqui na Patagônia que nos vai deixar cada vez mais dependentes da adrenalina e do isolamento que esta experiência nos modificou, não só nos nossos corpos, mas em algum grotão profundo da essência da nossa vida.
Agradecemos a todos que nos apoiaram: família Selva, Kailash, familiares e amigos que foram compreensíveis o bastante para aceitar nosso chamado da natureza em estado bruto. Já já estaremos de volta aos nossos amorosos lares com as pessoas com as quais dividimos por tanto tempo os pensamentos durante a prova.