“Meu amor, o que você faria se só te restasse um dia?”
Compare o trecho da música de Paulinho Moska à nossa vida de atleta de Corrida de Aventura pra perceber que o nosso esporte tem esse incrível poder de deixar cada momento único. Você nunca mais estará naquele lugar, daquele jeito, naquelas condições. Nada será repetido, não haverá outra chance! Em outros esportes, você testa percurso quantas vezes quer e testa suas habilidades no local. Na Corrida de Aventura não, a sua chance é aquela e pronto!
Arnaldinho é um verdadeiro articulador, cheio de ideias inovadoras, de invenção de arte, de convidados nas provas. Dessa vez, ninguém mais, ninguém menos do que Xiquito elaborou o percurso pra gente. Imagina!!! O cara já correu em tudo que é canto do mundo, já passou pelos perrengues Master… O lado bom é que não tem erro. O lado duvidoso é que qualquer coisa vai parecer fácil pra ele.
Tivesse preocupada com alguma coisa, a Live seria o tranquilizador. Na linguagem de Arnaldo, a prova seria tranquila, fluida, rápida, com remo muito divertido. Não chegou a mentir em tudo.
Sobre o remo divertido, por exemplo, quando soube das corredeiras do Rio Oricó, enxerguei uma grande oportunidade de rever conceitos e fazer as pazes com meus fantasmas. Será que seria desesperador como foi da primeira vez? Será que o que eu enxergava como perigoso há quase 20 anos atrás, seria visto da mesma maneira agora?
Faltando uma semana pra prova, reunião. Um dia antes, tudo pronto. A mesma coisa de sempre, mas partimos Ibirapitanga com atraso porque Mamau tava com dor de barriga! E foi aí que começamos nossa aventura tragicômica na BAR.
A cidade estava em festa com a nossa chegada, a escola prontinha pra nos receber, os kits lindos! Colete de prova e camisa finisher Top das Galáxias! Acolhimento nota dez por todo canto: comunidade, gestores, organização e staffs! Aliás, temos notado que nosso esporte tem tido uma visibilidade maior nas cidades e as prefeituras vem abrindo as portas para os eventos. Isso é massa! Seguimos trabalhando nas categorias de base, no trabalho de formiguinha da Escola de Aventura.
Antes da largada, a prefeitura ofereceu um café da manhã pros atletas. A graça é que quando cheguei lá, achei que tinha pouca coisa. Então, saquei o sanduíche que tinha feito pra comer no trekking e comi todinho. Para a minha surpresa, a “comidaiada” começou a chegar. Com a minha cara de tacho, segui comendo de tudo que foi aparecendo. A sorte é que não falei mal do café precipitadamente. Só pensei.
Largamos debaixo de chuva!
Vinte e cinco quilômetros de trekking até a canoagem, ora por estradas e trilhas, ora rasgando mato em azimute por plantações de cacau. O mapa tinha bastante curvas de nível, mas caminhamos e corremos pelos vales. Encontrar os PCs 1 e 2 foi bem tranquilo. Para achar o 3 também não deu muito trabalho. Nossa navegação estava bem precisa, rasgamos por uma plantação de cacau e caímos direto na trilha principal até chegar numa fazenda. Lá, os meninos viram que estávamos em 3º lugar geral e, mesmo tendo esperado Mamau ir ao banheiro da casa de Xiquito, poucas equipes passaram.
Seguimos em busca do 4 e do 5, também sem dificuldade, até que fizemos uma escolha completamente equivocada na saída da Vila do PC5. Dois navegadores trabalhando errado é a merda das merdas! Pegamos o caminho errado e seguimos na maior felicidade, comemorando o fato de estarmos entre os primeiros. Mas aí já sabe, né?! Alegria de pobre dura pouco, o que era pra ser 1,5km, deu 2km e nada batia com nada naquele lugar. Encontramos a Insanos e a Terra procurando o PC, sem sucesso. Ainda insistimos mais um pouco, até que decidimos voltar tudo. E foi assim que descobrimos que entramos na estrada errada.
A chuva não deu trégua! Aliás, algumas vezes chovia menos, outras vezes mais.
Maurício seguia enjoado e com dor de barriga. Àquela altura, já carregávamos a mochila dele, ajudávamos no suporte possível, mas sempre achando que seria passageiro.
Por fim, alcançamos os sete PCs do trekking, chegando à transição em penúltimo lugar, animados pra cereja do bolo: a canoagem.
Foi uma transição muito rápida! Só o tempo de prender remos ao corpo, afivelar os coletes, descer com os barcos até o rio e guardar os mapas. Dali até o final da canoagem não havia PCs. Não fiz nenhuma anotação no mapa, nenhuma medida, só olhei o percurso do rio pra ver se não tinha risco de achar uma bifurcação. E notei que o fim do percurso estava a uns 3km depois da ponte da BR 101.
Entrei no rio sem sentimentos de aversão e nem desejo! Nem medo, nem coragem. Começamos com uma discreta corredeira, que rendeu as nossas imagens pelas lentes mágicas do querido Togumi. Depois seguimos por umas curvas sinuosas até a coisa ficar emocionante pra valer.
Sabíamos que não desceríamos a cachoeira maior, proibida para menores. O resto, desceríamos tudo.
Na beira do rio, poucas saídas, casas apareciam muito esporadicamente, a correnteza ajudava a evoluir. Fomos avançando por pedras, corredeiras desafiadoras, galhos, árvores caídas. A cada queda d’água comemorávamos o fato de não termos voado da embarcação.
O primeiro caldo ficou por conta da dupla Lucas e Vitor, com uma performance incrível, dando aquela cabriola rio abaixo. Viva eles!!!
A tão esperada cachoeira chegou quando alcançamos a Xixarros. Descemos pelo cantinho da esquerda, conforme orientação da organização, carregamos os barcos, passamos por várias pedras enormes e entramos no barco novamente. Curiosamente, olhamos pra trás pra contemplar a “temida” cachoeira, que nem pareceu tá má assim. Só bonita!
Foram muitas descidas, empurrões com remo, pés pra fora do barco, mãos empurrando pedra, corpo dando impulso, tronco pra passar por cima. Mais adiante, uma outra queda d’água nos surpreendeu por sua altura. Além do barulho da água bem mais forte, a continuação do rio parecia um degrau. Não deu tempo nem de pensar. Quando vimos, já estávamos lá embaixo, comemorando.
Nos enganchamos em várias situações, rio abaixo. Nossa única queda foi a mais boba do mundo. A correnteza nos empurrou pra uma moita cheia de espinhos e, no que brecamos pra desviar, o barco virou com tudo. Foi praticamente o cavalo de pau mal sucedido! Em questão de segundos, fiquei mergulhada embaixo do barco, com lanterna e tudo. E, só depois, os meninos disseram que caímos bem do lado de um cavalo morto que estava com um urubu comendo suas tripas. Ai que nojo!! Ainda bem que nem vi.
Quando a escuridão chegou e a chuva anuviou as nossas vistas, apenas o som das águas nos alertava sobre a proximidade das corredeiras. Apesar das condições adversas, nos mantivemos focados e determinados a seguir em frente. Aos poucos, fomos encontrando algumas equipes que estavam à nossa frente.
Mau queixava-se dos enjoos, de fraqueza e tontura. Começamos a nos distanciar dos nossos parceiros, a perder o rumo do barco… Nunca vi nosso amigo daquele jeito. Muito pelo contrário, ele sempre foi nosso “cara mais forte”, o “cavalo de força” da equipe. Em nossa cabeça, passaria muito rápido, mas o tempo foi passando e as coisas não estavam melhorando.
Fizemos a troca da dupla no meio do rio mesmo, um se jogando pra um barco, outro pro outro. Passei a remar com Vitor e Mau com Lucas. E o resultado dessa história é que Lucas remou por cerca de 10km sozinho, enquanto Mamau chegava a delirar, se esforçando pra ajudar ao menos nas corredeiras.
Entre corredeiras e momentos de calmaria, ficamos de saco cheio de remar. É assim mesmo! Tem hora pra tudo nesses remos longos, inclusive, pra xingar os organizadores por terem nos feito remar mais de 30km. Sempre tem aquele que solta o “Tem necessidade disso?”.
A ponte da BR101, finalmente chegou! E o diacho do PC só apareceu 3km depois, quando tudo que a gente pensava era sair daquele barco.
Reparei da receptividade de Xiquito. Nos deu um “Boa noite, tudo bem? Bem vindos!”, e apertou a mão de Vitor. Achei fofo! Todos os Staffs poderiam tratar a gente assim. Principalmente, depois dos 30 km da canoagem mais incríveis da sua vida!
Os meninos desinflaram os barcos bem rápido, com a ajuda de Xiquito, e carregaram pelos 7km que se seguiram até a cidade, de onde teríamos que sair para iniciar os trechos de bike da prova. Pra variar, Mau precisou ir ao banheiro mais uma vez e, dali em diante, nossas paradas não acabaram nunca mais. Ali era o quê, metade da prova? Ainda tinha muito chão pra gente se lenhar!
Chegando à cidade, por volta de 22h, a organização avisou que teríamos um corte às 4 da manhã na AT4. Depois do horário, não faríamos o trekking de 7km. Precisávamos cumprir o Rogaine de bike dentro da cidade, voltar pra mostrar as fotos dos PCs e seguir por 22km até a AT4. Por conta da situação em que nos encontrávamos, fizemos uma transição lenta, ponderando as necessidades do momento, com a intenção de administrar as intercorrências. Até pedimos uma pizza para comermos depois do Rogaine.
Logo na saída, meu pé ficou preso no pedal. Um parafuso do clip se perdeu e não conseguia me soltar. Lucas saiu pra um lado, Xiquito pra outro, o cara da Advogado Aventureiro pra outro. Depois de mais de meia hora na frente do posto de gasolina, aguardando uma ferramenta pra soltar a sapatilha do pedal, saí pedalando com um pé preso e outro solto, com meu clip no bolso.
Conhecemos a cidade de Xiquito de Norte a Sul, de Leste a Oeste, em menos de uma hora. Na volta, a pizza, uma boa resenha, e mais um Pitstop de Mamau, cujo kit completo envolvia alguns minutos espichado no chão e uma cagada, não necessariamente nessa ordem.
Foi ali que Vitor ventilou a possibilidade de pararmos, entendendo que a história da sapatilha poderia ser um sinal do universo pra gente nem seguir. A verdade é que ainda tenho dificuldade de reconhecer o momento de parar. Acho que nem Maurício queria. Além disso, quando não é com a gente, toda a empatia pode ainda não dar conta de entender a situação. Na minha cabeça, ainda conseguiríamos reverter a situação e minha sapatilha não era o maior dos problemas. Seriam apenas 22km até a AT4 e a gente resolveria o que fazer.
Ao contrário do que pensamos, a pizza não caiu bem no estômago de Mau! Fizemos os 22km de mountain bike mais longos das nossas vidas, dos últimos tempos! Depois de cada subida, independente da sua magnitude, o Pitstop completo. Maurício fez uma verdadeira demarcação de terra em Ibirapitanga. Gracinhas à parte, a coisa ficou bem séria. Acredito que não tinha mais nada pra sair da barriga dele, exceto líquido. Ou seja, a desidratação estava acontecendo.
Encontrar os PCs 8, 9 e 10 foi a coisa mais fácil que fizemos naquela madrugada, apesar das subidas intermináveis. O desafio foi psicológico pra equipe inteira! A cada parada, o frio e o sono chegavam mais pertinho. Menos pra mim, porque depois dos 50 anos nunca mais senti o mesmo frio que todo mundo sente.
Então começamos a ponderar mais uma vez a possibilidade de pedirmos resgate, inclusive, cogitamos nos separar, mas, no fim das contas, decidimos mandar recado pelos meninos da Azimute da Caatinga que estavam pertinho da gente, só pro povo saber que a porra tava pegando pro nosso lado. As olheiras escuras e profundas de Maurício sinalizavam que a gente realmente já estava passando dos limites.
Seguimos devagar, o dia foi amanhecendo. Acabamos passando direto pela entrada da AT4 (sem querer mesmo) e chegando até o asfalto. Pra nossa surpresa, uma pick-up passou bem devagar e o motorista ficou nos olhando curioso. O que será que ele pensou, hein?!
Sei que Vitor gritou:
– Moço, tá indo pra Ibirapitanga?
– Tô! – Respondeu ele.
– Leva esse cara aí que ele tá passando mal! – Pediu Vitor com a cara de pau dele.
E foi assim que o motorista saiu do carro, colocou a bicicleta de Maurício na carroceria e levou nosso amigo embora. O carro foi sumindo no horizonte… Nós fomos pedalando os últimos 9km de asfalto, como se não houvesse amanhã. Chegamos em Ibirapitanga desfalcados, mas inteiros, refletindo se demos sorte ou azar de pegar o caminho errado, e ainda encontrar uma carona pra Maurício no exato momento em que atravessávamos a pista.
…
Pensamento na minha cabeça:
“Gente, porque não me levaram também? Eu sou mulher!!! Que sacanagem! Ah, eu não queria ser resgatada mesmo! 😂”
…
A desistência é de embrulhar o estômago! Desistir de uma prova de Corrida de Aventura nos leva a reflexões profundas sobre como as coisas poderiam ter sido diferentes se certos eventos não tivessem ocorrido. Seria muito bom se não fosse necessário, mas muitas vezes é uma atitude corajosa quando reconhecemos nossos limites e priorizamos nossa segurança.
E “SE” a gente tivesse feito tal coisa??… Esqueça isso! Em nossa última chance daquelas 24 horas, fizemos tudo que achamos que era o melhor a fazer.
Não posso finalizar esse textão sem agradecer aos meus parceiros de equipe, por essa prova, pela dedicação, apoio e espírito de equipe demonstrados em cada momento. Com destaque especial pro nosso pequeno gigante, Lucas, que deu um show de maturidade e força no auge dos seus 23 anos, no começo de sua carreira esportiva.
Arnaldo e toda equipe, valeu demais! Foi uma prova incrível! Percurso massa, receptividade, logística, staff alinhado, cidade acolhedora, alojamento grátis! Arrasou!
Adorei encontrar todo mundo! Até a próxima Aventura!