Terça Feira, 16 de junho. Com o corpo ainda inchado e um torcicolo repentino, começo a colocar (ou pelo menos tentar) as idéias, imagens e recordações em ordem... A experiência no deserto do Jalapão deixou marcas profundas, que com certeza vão transformar nossas maneiras de perceber e agir daqui prá frente.
Vanessa Cabral é psicóloga e terapeuta corporal, proprietária da Anamitrá Clinica Formativa |
Difícil definir ou explicar como todo esse processo acontece, mas o fato é que o espírito aventureiro que reside em cada corredor de aventura se alimenta vorazmente de experiências intensas que misturam curiosamente sensações de dor e prazer. Ao longo da corrida, tive a oportunidade de interagir com vários atletas que, em seus momentos mais difíceis, levantavam a clássica questão: “Prá que tudo isso? Por que nos submetemos a essas loucuras?”.
Essa pergunta não é nada simples de responder, mas podemos levantar algumas hipóteses.
Primeiramente, não podemos deixar de lado o fato que estamos imersos em um mundo onde a tecnologia, o consumismo e a fragilidade e volatilidade das relações nos desconectam do presente e da nossa identidade; nos isolando do mundo, potencializando o sentimento de angústia que habita em cada ser humano. Esse eterno “vazio”, essa busca por um “sentido para a vida” somente pode ser amenizado quando nos encontramos em nós mesmos, reconhecemos nossa presença, e, com ela, a sensação de paz e completude. Mas como encontrar esse caminho? Ou melhor, como achar esse PC Virtual, que pode ser comparado ao PCV7 do Brasil Wild Extreme 2009: uma folha A4 parda colocada no meio de uma savana...
Um primeiro passo a ser dado nos joga em uma jornada de volta às origens – é preciso que o indivíduo se reconecte e se reintegre, “volte para si mesmo”. É hora de mergulhar em trilhas da Alma, cujo mapa e coordenadas estão gravados no seu corpo físico. O coração funciona como bússola, e precisa estar alinhado e desapegado de qualquer coisa que possa prejudicar a sua capacidade de apontar a direção que se deve prosseguir, e para isso é preciso que a mente e ego se submetam e se aquietem: é preciso trabalhar constantemente a compaixão e humildade (exercício muito difícil nos dias de hoje).
Experiências extremas como as provas expedicionárias podem servir como um “rasga mato” eficiente para que se consiga libertar nossos instintos e desejos em busca deste reencontro. Ao aceitar o desafio, cada guerreiro tem a oportunidade de travar seu duelo pessoal. Despojado do conforto do seu dia-a-dia, da sua agenda de compromissos, das preocupações profissionais; ele é colocado frente-a-frente com questões básicas de sobrevivência individual e em grupo. Seus medos e limitações físicas, emocionais e psíquicas afloram naturalmente, e com eles a sensação de estar presente e vivo: os problemas e desafios que aparecem precisam ser encarados e superados – não existe plano B, agora é você contra você mesmo na encruzilhada, o que vai fazer? Avançar ou recuar? O significado de desistir aqui está diretamente relacionado ao fato de viramos as costas para nós mesmos, de continuarmos desconectados. Mas se enfrentamos de peito aberto, a sensação é maravilhosa, e aí, parece que tudo se encaixa – o corpo está ali, pulsante, a mente e nossa capacidade perceptiva age instintivamente, nos tornando capazes de nos adaptar a quaisquer situações e seguir em frente... Acessamos o poder Divino que sempre esteve dentro de nós, e é neste momento que tudo faz sentido.
Dos 6 intensos dias que convivi com a Cão do Mato Anamitrá e com outras equipes que cruzaram nossos caminhos, todos os momentos foram especiais, inspirando reflexões e, com certeza, muitas transformações no meu jeito de caminhar daqui prá frente.
Acredito que a maior e mais importante aprendizagem, e que vai permear todas as outras vivências, está relacionada com a capacidade e necessidade do ser humano em coexistir - seja com outros da sua espécie, seja com o ambiente vivo que o cerca. Os dias no deserto do Jalapão nos colocaram em contato com uma Natureza poderosa e dominante, que impunha limites físicos e psicológicos, nos levava a descobrir estratégias diferentes para transpô-los e continuar em frente.
Novas formas de locomoção
A capacidade criativa do ser humano é realmente ilimitada, o importante é nos desprendermos, descongelarmos dos padrões rígidos para que novas formas floresçam. Foi exatamente isso que acabou acontecendo já no primeiro dia, quando tivemos que vencer os inúmeros charcos que nos desaceleravam no trekking de 47km. Ao perceber que estávamos sendo engolidos pela vegetação submersa, e que a tradicional maneira de locomoção do ser humano não estava sendo nada eficiente, deixamos a postura ereta de lado e nos “curvamos” diante da vegetação, reproduzindo movimentos reptilianos. O Thomas, inventor do novo estilo de andar, deu o nome à manobra de “Jacaré Pepira”. Aproveitei os trekking polls para aumentar a superfície de contato e aumentar velocidade na passagem que muitas vezes era angustiante, pois o medo de topar com alguma cobra ou bicho esquisito era bem grande.
Novas formas de se relacionar
Ao longo dos seis dias que passamos juntos, novas formas de se relacionar foram sendo criadas entre os atletas, usando como pano de fundo um sentimento imprescindível – a confiança, que foi posta à prova em vários momentos.
Ao final do primeiro trekking, havia uma certa apreensão no ar, pois estávamos submersos no maior dos charcos e a escuridão já havia tomado conta do cenário. O medo de que alguma cobra se incomodasse com a nossa invasão e nos pregasse uma peça começou a crescer. Foi aí que Fábio e Thomas, navegando em parceria, conseguiram nos localizar e achar o PC3. Todo esse processo foi compartilhado o tempo todo com o resto da equipe, nos fazendo perceber que os dois sabiam muito bem onde estávamos, e que achar o PC não tinha sido uma questão de sorte, mas sim de boa navegação. Comemoramos bastante o feito, e partimos felizes e mais confiantes para a flutuação, iluminados pela Lua cheia de graça e beleza.
Outro momento transformador aconteceu na segunda parte do rafting. Havíamos feito somente um curso intensivo de 4 horas em São Luis do Paraitinga, e o Betão havia sido designado para ser o “cara do leme”. Na medida em que íamos passando pelas corredeiras, a confiança da equipe crescia, mas alguma coisa ainda me incomodava, pois ao final sabíamos que enfrentaríamos uma classe 3+ que o Puppo havia indicado poucos atletas na platéia do briefing como capazes de transpô-la. O medo de virar e, principalmente, danificar algum equipamento (principalmente as lanternas de bike que eram emprestadas) estavam me desmotivando. Minutos antes de chegar no lugar que teríamos que optar pelo portage ou pela descida, os meninos todos estavam confiantes, mas eu não. Neste momento expliquei as minhas razões, que foram acatadas com muito respeito. Neste momento pedi para que esperássemos chegar mais perto, e ouvir o que o staff da prova iria nos falar sobre o trecho. Foi só o staff abrir aquele sorriso e perguntar se a gente não ia se divertir naquele trecho que eu prontamente topei o desafio! Se ele estava nos incentivando, por que não se jogar?! E lá fomos nós! Betão foi impecável no leme, e saímos dali mais fortalecidos ainda.
A comunicação entre a equipe foi melhorando a cada hora, o que ajudou bastante para que conseguíssemos superar o pior dos perrengues: na segunda perna de 63km de trekking.
Quando o bicho pega mesmo
Após o rafting, cometemos um erro de estratégia que nos custou bem caro. Na ânsia por conseguir o bônus do PCV7, perdemos 1 hora e meia de luz do dia, que se somaram aos três pneus furados na bike e nos jogaram para o trekking de 63km já com a escuridão imperando. Conclusão: nos perdemos logo no início da trilha, batemos cabeça durante umas duas horas em vão, sendo forçados a esperar o dia clarear para poder prosseguir. Este atraso prejudicou toda a nossa logística, e o racionamento de comida foi inevitável para pudéssemos achar todos os PCs virtuais. Foi a primeira vez na minha vida em que passei mais de 12 horas seguidas fazendo atividade física e sentindo meu estômago roncar sem perspectivas de uma boa refeição. Os efeitos psicológicos desta privação não demoraram a aparecer: o grau de irritabilidade da equipe aumentou juntamente com a preocupação. Num primeiro momento, os erros aumentaram, o desânimo começou a contaminar nossos movimentos, ficamos letárgicos, percebendo que mais uma noite se aproximava, e com ela, mais dificuldade em encontrar a trilha correta que nos levaria ao PCV 11... Foi neste delicado momento que a voz da experiência falou mais alto: Thomas e Fábio uniram suas forças e fizeram o restante da equipe participar ativamente na busca pela trilha no meio daquela vegetação que na penumbra era ainda mais misteriosa. Em cerca de 20 minutos de triangulação encontramos o bendito caminho. Como crianças que encontram o tesouro escondido, recobramos nossas forças para descer e desvendar as cores das casas da fazenda. Durante este percurso, foi possível ouvir outras equipes gritando do outro lado das montanhas. Já perto do PC, cruzamos com os bombeiros, que estavam se comunicando com atletas perdidos na trilha. Ao finalmente atingir o PC, fomos presenteados com o carinho e a atenção do Staff encarregado por fechar os PCS: o querido Dú Padovani, ao ouvir a nossa história não pensou duas vezes e nos deu alguns sanduíches de queijo e um bombom sonho de valsa!! Faltavam 15 minutos para a meia noite, e aproveitamos também para cantar parabéns para o Thomas, brindando com aquela comida maravilhosaaaaaa!!
Uma outra situação bem tensa surgiu no final do último trecho de bike. Depois de descer os quase 2km de downhill, acabamos pegando a trilha errada, e começamos um rasga-mato (ou melhor, um afasta-bambú) que foi complicando a nossa situação.
Além de ficarmos passando as bikes de um lado para o outro da cerca, a mata que estávamos desbravando era cheia de formigas pretas enormes! Elas estavam por todos os lados! No chão, subindo pela bike e comendo as bolsinhas que tivessem algum resquício de gel! Insetos assassinos! Naquele momento, percebi que estava chegando perto da exaustão... A descida com a bike tinha me deixado muito suada, e no meio daquela floresta, o frio começava a tomar conta do meu corpo, e despertava um medo de uma situação que já havia vivenciado há uns anos atrás: hipotermia. Meio que delirando e procurando uma saída para o meu problema, tentei convencer os meninos a acender uma fogueira em cima de uma pedra que ficava no meio do rio onde estávamos parados procurando a trilha correta. Ao ouvirem o meu desejo, Fábio e Thomas tiveram a maior paciência e carinho para me explicar que, um fogueira, naquela altura do campeonato não ia rolar... Me pediram (e eu atendi prontamente) para que eu tentasse dormir enquanto eles buscavam uma saída. Imediatamente, peguei o saco de emergência que havia sido gentilmente emprestado pelo Diogo da e-lama, me enfiei nele, fechei a boca e me deitei numa pequena clareira. O Thomas ficou de guardião, cuidando para que nenhuma formiga assassina resolvesse me atacar, enquanto o Fábio e o Betão saíram em busca da trilha correta. Não sei ao certo quanto tempo isso durou, só sei que fui acordada por eles, dizendo: Vamos Van!! Achamos a saída, borá sair daqui antes que as formigas nos levem embora!
Já fora de perigo, a adrenalina baixou, principalmente no nosso super navegador Fábio, que até o momento tinha sido quem havia dormido menos. Ele comentou brevemente que agora estava com sono. Thomas tentou acordá-lo dando um susto, mas não se passaram nem 5 minutos desta tentativa e Fábio passou pela gente e foi direto para abraçar uma moita.
Fiquei olhando aquela cena sem muita reação: Fábio bateu no morrinho e capotou! Do jeito que ele caiu, não se mexeu mais... Corri em sua direção, cheguei perto com medo de movimentá-lo. Perguntei: “Fábio, tudo bem com você? Se machucou?”. E aí, balbuciando, ele respondeu: “ Hum... to bem... Me deixa aqui... tá tão gostoso...”. Ao ouvir a declaração do navegador, a equipe inteira começou a rir. Levantamos o guerreiro para que pudéssemos prosseguir, argumentando com ele que estávamos perto do PC22 e que lá ele poderia dormir melhor. Antes que ele conseguisse subir de volta na sua bike, nos pediu mais um favor: “Será que vocês poderiam me ajudar com esses espinhos? Não consigo me mexer!”. E foi aí que percebemos que ele estava parecendo um porco-espinho! Coitado! Mais risadas e mais 15 minutos de trabalho de equipe retirando tudo que havia grudado nele! Ô dó!
Revendo expectativas e descobrindo o caminho como destino
Os dois episódios acima foram os mais complicados em toda a corrida, mas não foram os únicos. Nosso psicológico foi testado em vários momentos, principalmente quando o assunto era baixar a bola e aceitar que havíamos ficado para trás, nos fazendo reprogramar nossos objetivos: se, no início tínhamos como meta chegar entre as 10 primeiras equipes, o desenrolar da corrida foi colocando outros obstáculos e realidades, que nos levaram a estabelecer o objetivo de simplesmente acabar a corrida em tempo hábil. Saímos de um cenário de disputa para uma corrida contra o tempo e um desafio interior, de cada um consigo mesmo, e da nossa capacidade de nos manter motivados e motivando os demais. Foi neste difícil exercício que percebi a grande força da Cão do Mato Anamitrá. De maneira automática e verdadeira, cada atleta começou a assumir uma posição de motivador dos demais. O revezamento era feito automaticamente, sem que ninguém precisasse pedir ou orientar. Estávamos presentes e preocupados com tudo e com todos. O cuidado com cada um foi extremo. Lembro bem da nossa saída de Taquaruçú. A Lobo Guará já havia saído e retornado duas vezes em função de pneu furado por causa do calor do asfalto. Todas as outras equipes que estavam no PC já haviam decidido voltar direto para Palma (corte 2), sem fazer o pedal de 47km e o remo final de 22km. Graças à força e capacidade de liderança do Fábio, que deixou de dormir para arrumar os detalhes para a nossa partida no Corte1, saímos embaixo de um sol escaldante para cumprir o resto do percurso. Após passar pelo PC19, entramos no caminho que nos levaria 10km acima no asfalto até chegar ao parque. A monótona subida no asfalto intensificou o sono de todos, juntamente com o cair da noite. Fizemos uma fila indiana para subir, mas o cansaço levava cada um a sair da linha e pedalar em ziguezague no asfalto. Carros passavam velozmente. Tensão no ar. A cada momento, um de nós servia de “pastor” das bicicletas desgarradas, procurando fazer o companheiro acordar e voltar para a fila. Quantas emoções né Cães!
Agradeço imensamente aos meus companheiros de jornada: Fábio, Thomas e Betão. Grandes homens, com corações enormes, que souberam cuidar de mim e da equipe como um todo. Menção especial para o nosso capitão e navegador, Fábio, que foi incansável, mantendo a equipe unida e atenta aos objetivos que iam se transformando ao longo do caminho.
Gostaria também de deixar aqui registrado a minha satisfação por ter participado de uma prova tão linda e bem organizada. Júlio, Alemão e Equipe, vocês foram impecáveis. Era muito importante para nós atletas perceber ao longo de toda a corrida que a Organização estava de olho e por perto, e isso nos ajudava a ter forças e prosseguir.
Voltando à questão inicial deste artigo, sobre por que nos submetemos à tais experiências? Acredito que o ser humano tenha um fascínio e uma necessidade inata de prosseguir formando, evoluindo, descobrindo, criando. Uma experiência como o Brasil Wild nos joga dentro de um turbilhão, que acelera nosso processo de auto-conhecimento. É impossível sair de uma prova destas da mesma maneira como entramos. Nossa percepção sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre nós mesmos é fortemente colocada à prova e alterada.
Percebemos que a vida pode ser simplificada, de que não precisamos de tantas coisas para sermos felizes, ou nos sentirmos completos, já que grande parte do prazer pode ser extraído do fato de estarmos vivos e em comunhão com a natureza. A volta para o corpo é um reencontro com o universo que habita em nós. E, ao perceber este milagre da vida, nossos corações voltam para o mundo de concreto já pensando na próxima jornada...
Namastê!
Vanessa Cabral
Psicóloga e Terapeuta Corporal
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