Relato de Francisco Avelino na Indomit Costa da Esmeralda 2017

Por Francisco Avelino - 06 Nov 2017 - 09h42

Antes da Largada
Guardadas as posições e distâncias continentais, chegar à cidade de Bombinhas, no litoral catarinense, é quase tão difícil quanto chegar à Patagônia Chilena.

Saí de casa às 11h:30 da manhã, numa quinta-feira, com previsão de levar no máximo quarenta minutos de carro até o aeroporto de Congonhas. Acabei, inocentemente, me esquecendo de que São Paulo é uma cidade que não está nem aí para qualquer que seja sua previsão.

Às 12h:52, quando cheguei na fila de checkin da companhia aérea e comecei a indagar o atendente sobre o voo de 13:30 para Florianópolis, ouvi o serviço de som do aeroporto informar:

“Atenção senhores passageiros com destino a Florianópolis, embarque encerrado no portão 14”.

Era meu voo. De prontidão o atendente me posicionou como próximo da fila e avisou pelo rádio da empresa que aquele corredor não perderia por nada a maior experiência da vida dele até aquele momento.

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O voo para a famosa “Ilha da Magia”, capital do estado de Santa Catarina, levou cerca de uma hora. Ao chegar e pegar minha bagagem, vi um rapaz com uma mala bem grande nas costas e camiseta azul do “Desafio das Serras”. Imaginei com pouca dificuldade que fosse um corredor.

Fui para um ponto de ônibus municipal, do lado de fora do aeroporto. Esperei e peguei o primeiro que veio. Ele me deixou num terminal de ônibus no centro da cidade. Ao lado do terminal está a rodoviária e lá eu peguei o ônibus intermunicipal para a cidade de Porto Belo.

No caminho, moradores locais subiam e desciam. Não identifiquei nenhum possível corredor entre os passageiros. Gostaria também de deixar claro que eu não tenho qualquer tipo de faro infalível para identificação de corredores, ou seja, eu acho que não tinha nenhum outro maluco desse tipo ali naquele ônibus.

No GPS do celular, eu ia acompanhando a viagem para saber quanto ainda levaria para chegar e quando faltavam cerca de trinta minutos para chegar à cidade, começou a dar as caras uma certa formação montanhosa do lado direito da estrada. Diminuindo o zoom do GPS, pude reparar que era a formação que dividia Porto Belo e Bombinhas e por onde, na noite seguinte, eu correria 82,5 km. Isso, de certa forma, me deixou emocionado.

Vim preparado mais uma vez para enfrentar fortes emoções na prova, nos detalhes que a cercam ou, principalmente, em sua chegada. Desta vez, um dia antes, a montanha e eu estávamos ali, lado a lado. Na madrugada de sexta-feira para sábado estaríamos de mãos dadas.

O ônibus chegou à rodoviária de Porto Belo e não era bem uma rodoviária. Era uma esquina, com um estabelecimento comercial que vendia bebidas, salgados e passagens para as cidades vizinhas e também onde alguns ônibus estacionavam na frente para sair em horários pré-definidos.

Este ponto ficava a cerca de 6 km do centro da cidade de Bombinhas e 4km do meu hotel, que ficava logo na entrada da cidade. Eu tinha duas opções, esperava um ônibus que sairia em cerca de 1h dali para Bombinhas ou pegava um táxi no ponto que ficava em frente. Fui para os táxis. Quando sentei no banco de trás, sabendo que tinha cerca de R$ 25,00 no bolso, perguntei ao taxista quanto a viagem custaria:

“O senhor tem ideia de quanto, mais ou menos, custa a viagem até bombinhas”?
“Bombinhas? Bombinhas é tabelado. R$ 50,00”.
“R$ 50,00? Não estou com esse dinheiro. Aqui na cidade tem o Banco X”?
“Não tem”.
“Em Bombinhas talvez? Ou um daqueles Caixa 24 Horas que atendem vários bancos”?
“Não”.
“Bem, então eu agradeço muito o senhor me informar o valor tabelado antes de começarmos a viagem”.
“Sim. Tudo bem”.

Desci do carro e voltei para a rodoviária. Pesquisei nos papéis afixados na parede qual seria o horário do próximo ônibus para Bombinhas. Identifiquei e me pus a esperar até que um rapaz, vestindo uma camiseta azul do Desafio das Serras se aproximou. Sim, o mesmo do aeroporto. Eu não o havia visto até aquele momento, só sei que ele não veio no mesmo ônibus que eu.

“Olá, amigo. Você está indo para Bombinhas também”?
“Sim... Eu tentei o taxi, mas o motorista quis me assaltar”.
“Sim, eu tentei também. Olha, eu chamei um Uber. Ficou cerca de R$ 16,00 até o meu hotel. Se você não se incomodar, podemos dividir a viagem”.
“Poxa, claro. Com certeza”.

Pesquisei o Uber no meu celular também, a fim de evitar incômodo ao gentil amigo. Até o meu hotel o valor era menor ainda, mas não havia nenhum carro disponível. Provavelmente, o único carro disponível na cidade era aquele que ele havia chamado.
Quando o carro chegou, entramos e então percebi que não havia me apresentado.

“Nossa, nessa confusão toda, sequer perguntei o seu nome, meu caro”.
“Ambrósio”.
“Muito prazer, Ambrósio, eu sou o Francisco”.

No caminho conversamos sobre a corrida –  ele iria correr 100 km – e sobre as demais provas que fizemos. Ele estava bem treinado e preparado, pelo volume de provas que comentou. O motorista do Uber ficou assustado.

“Vocês correm tudo isso”?
“Sim”.
“Mas vocês são pagos para isso”?

Depois de rir um pouco (para não chorar) deixamos claro que éramos loucos o suficiente para pagar para por aquilo e que dificilmente ganharíamos os prêmios distribuídos aos vencedores.

A esquina do meu hotel chegou. Paguei uma caixinha ao motorista, conforme combinado com o Ambrósio, que pagaria o valor integral da viagem dele, e desci. Caminhei por cerca de 100 metros e cheguei ao meu hotel por volta das 17:30.

“Demora mas chega”.

Me acomodei, me troquei, descansei e saí para procurar um restaurante para jantar. O hotel é quase à beira da praia e eu não perderia por nada a oportunidade de andar um pouco a mais e dar uma espiada no mar. O tempo estava fechado e ventava muito. Seria ótimo correr assim.

Quando cheguei ao calçadão da praia, bem em frente à rua em que eu vinha, estava sendo montada toda a estrutura da Indomit: pórtico de largada e chegada, placas de patrocinadores e tendas para acomodar serviços da organização.

Não perdi a oportunidade inesperada. Tirei as devidas fotos, registrei os devidos filmes e compartilhei com meus familiares e amigos corredores.

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Na noite a seguir, a partir daquele ponto, se iniciaria minha jornada.

O dia seguinte foi cheio de ansiedade. Aproveitei para comprar água para encher a mochila de hidratação, comida, remédios, comprar o serviço de retorno para o aeroporto no domingo para evitar sustos e retirar o kit do atleta, com camiseta, chip e número do peito. O dia estava abafado, mas o sol não estava forte. Também seria ótimo correr assim.

Almocei e fui para o hotel descansar.

Às duas da tarde largaram os atletas das 100 milhas. 100 milhas são equivalentes a 160 km! Consegue imaginar isso? Correr 160 km? Eu, tal qual a sonda Voyager, virando para fotografar o pálido ponto azul perdido no universo, consigo ver esses 160 km no horizonte. Quem sabe um dia eu esteja mais perto.

Por volta de quatro da tarde compareci ao Congresso Técnico da prova, onde são esclarecidos todos os detalhes pertinentes ao trajeto, questões de segurança e tudo mais que o corredor precise ter ciência sobre a prova. No congresso, encontrei o Ambrósio novamente, agora cercado de amigos aos quais me apresentou, cumprimentei-os e pudemos desejar, mutuamente, boa sorte na prova.

Voltei para o hotel para tentar descansar até que desse a hora de me arrumar e sair para a largada. Dormi com dificuldades. Nos momentos em que acordava, conseguia ouvir o barulho da chuva lá fora. Quando o meu relógio despertou, duas horas antes da largada, não estava mais chovendo. Eram vinte horas e, naquele momento, Ambrósio e os demais corredores de 100 km estavam ultrapassando o pórtico e largando para passar a noite na trilha.

Me arrumei enquanto as pessoas me mandavam mensagens de encorajamento, sucesso e sorte na prova.

Às 9 da noite eu saí do hotel e caminhei até a posição de conferência de equipamentos obrigatórios exigidos pela organização.

“Casaco Impermeável” OK
“Reservatório de hidratação” OK
“Lanterna Frontal” OK
“Luz traseira” OK
“Kit de primeiros socorros” OK
“Manta de emergência” OK
“Celular carregado e com o número da organização” Não OK

Eu estava com o celular carregado, mas não havia gravado o número da organização nos contatos. A moça prontamente me informou o número enquanto eu registrava nos contatos do celular. Feito. Tudo pronto. Ela então colou um adesivo dourado no meu número de peito, o que significava que os meus equipamentos estavam todos conferidos. Agora era só esperar a largada.

Encontrei o Marcelo, amigo que fez a mesma assessoria que eu por um tempo. Conversamos, tiramos foto e esperamos por ali juntos.

De quando em quando, o serviço de som anunciava que estava passando naquele momento um dos corredores das 100 milhas. Todos abriam espaço e aplaudiam muito enquanto o corredor voltava para dar mais 100 km que ainda teriam que correr.

Aproveitei e chamei meus amigos do Bonde do Trail Running pelo celular para aliviar a tensão. Mais uma vez, foi muito encorajador conversar com eles até que o relógio foi se aproximando das dez da noite e eu mandei a seguinte mensagem:

“Amigos, 9 minutos. Tenham uma boa noite. Até amanhã”.

Deixei o celular no modo avião e fui até o pórtico esperar os minutos que faltavam. Encontrei o Ernesto Carriço, do site Ultra Mania de Correr.

“Ernesto, tudo bem”?
“Opa, tudo bem”.
“Eu sou o Francisco, nós nos conhecemos apenas pela internet. A Ultra Fiord publicou o meu relato de 50k e o seu de 100k”.
“Claro, que incrível encontrar você por aqui. Estou fazendo uma live nesse momento da largada”.

Então ele “me apresentou” para o seu público ali no celular. Desejamos boa prova um para o outro e me afastei para esperar a contagem regressiva.
O locutor informou a passagem de mais um corredor das 100 milhas e então anunciou a contagem regressiva.

“Liguem as lanternas, atletas, a contagem regressiva vai começar... 5, 4, 3, 2, 1”

Apertou a buzina e largamos.

 

Antes do Nascer do Sol
As pessoas assoviavam, aplaudiam e gritavam palavras de incentivo enquanto passávamos correndo. Eram dez da noite e estavam começando os 80 km. Minha segunda ultramaratona.

Corremos por cerca de cem metros no calçadão até invadirmos a areia da praia. As luzes da cidade que beiravam a praia iluminavam o pouco mar que era possível de se ver. O barulho do vento e das ondas, entretanto, deixavam claro que apenas a visão era pequena. A areia estava dura e molhada, boa para correr. No final da praia, alguns metros à frente, viramos para a esquerda e iniciamos uma trilha de subida. Agora não havia mais luzes da cidade, nem pessoas aplaudindo, nem dava para ver o mar. Apenas lanternas e sombras de ultramaratonistas no meio do mato.

Subimos cerca de cem metros durante quase um quilômetro e em seguida, descemos quase a mesma distância. Fui ultrapassando corredores e vendo corredores mais rápidos me ultrapassarem. Esse trânsito não é competitivo. Talvez entre os líderes da prova seja, mas aqui, entre os amadores, temos muita alegria de ver alguém se superando e nos superando, pelo menos de minha parte.

Num momento da descida atingi uma área plana, mais à frente, percebi que os corredores iam até o fim da rua e já voltavam. Quando me aproximei, vi dois staffs de camisetas verdes (pessoas da organização que orientavam os corredores). Indicavam que era só passar por traz deles e voltar. Quando os corredores passavam, o casal de staff gritava palavras de incentivo e encorajamento. Passei por eles e disse:

“Falta só uma curva”.

Rimos juntos pois era óbvio que não faltava só uma curva. Essa questão de “falta só uma curva” acabou se tornando uma piada entre os corredores em todas as provas. Explico: quando o corredor está visivelmente cansado e a corrida está terminando, seja qual corrida for, sempre aparece um staff gritando:

“Força! Está acabando! Falta só uma curva”!

Aqui faltava um pouco mais de 80 km e incontáveis curvas. Foi só uma piada.

Voltamos para a trilha. Subimos um pouco e num dado momento a trilha perdeu suas árvores e foi possível ver um vasto horizonte escuro de onde só se podia ouvir o barulho das ondas. Era o mar. Logo na minha frente estava um rapaz.

“Acho que estamos perdendo uma bela vista”.

Completei 5 km com tempo de 40:22. Bom tempo. Eu estava tentando economizar nos primeiros 20 km, como havia pedido meu treinador. Tentando. Ainda não tinha desenvolvido tal habilidade. O começo de uma prova é bem empolgante e é onde o corpo está mais inteiro. Então economizar é um exercício difícil. Mas eu estava tentando.
No sexto quilômetro havia o primeiro posto de hidratação. Algumas pessoas pararam para beber água. Eu não parei. Segui em frente.

Aos poucos, comecei a ficar isolado, os corredores da frente e de trás estavam se distanciando. É normal na corrida de trilha esse espaçamento. Bem comum passar a maioria do tempo sozinho na corrida. Diferente de uma corrida de rua, onde sempre temos corredores por perto.

A trilha virou cidade, calçada, estrada e praia novamente.

No km 12 havia outro posto de hidratação, dessa vez com água, isotônico, doces e salgados. Parei, tomei um copo de isotônico e segui em frente na areia molhada e depois no asfalto. O próximo posto estaria no alto do segundo morro da prova, lá pelo vigésimo segundo quilômetro.

Sempre que havia uma bifurcação ou ponto que pudesse gerar possível dúvida do corredor havia um staff orientando qual direção seguir.

A corrida então saiu do asfalto e ganhou a trilha novamente. Era uma subida forte e pesada. O primeiro morro que a prova trazia. Levou cerca de dois quilômetros e, em seguida, já virou descida. Por mais que descidas descansem a perna, essa não foi assim tão fácil. Foi aqui que tive certeza de que correr de noite traz uma dificuldade muito maior do que correr de dia. Além de obviamente, estar escuro, correr nessas condições não permite que se tenha uma noção clara sobre a profundidade do próximo passo. É preciso fazer, em milésimos de segundos, considerações profundas sobre como posicionar o pé para a próxima pisada. Não é exagero. Uma pisada torta, em falso, ou calculada de forma incorreta pode causar torção ou queda e acabar com a corrida.

A descida terminou e logo começou a subir novamente, mas dessa vez mais íngreme. Eu via a luz traseira do corredor da frente acima da minha cabeça.

Devagar e sempre, colocando a mão sobre os joelhos eu ia sofrendo e me perguntando porque mesmo que eu estava fazendo aquilo. Em dado momento, a inclinação era muita e eu estava bem cansado. Como até o momento eu só havia bebido água, tomado um copo de isotônico e não comido nada, resolvi sentar um minuto e comer um queijo que estava na mochila. Foi só um minuto, mas ajudou bastante a terminar a subida. No fim dela havia um posto de hidratação, frutas e salgados. Comi uma paçoca e uma mexerica, além de beber isotônico e abastecer a minha mochila com água. Era o km 22.

Em todo posto havia uma placa com indicações para a posição daquele posto e em qual quilômetro estaria o próximo posto para cada uma das distâncias da prova que passavam por ele.

Deste posto começou a descida do segundo morro. Logo após essa descida, um pouco de plano e já começou a subida do terceiro morro da prova. Era o maior até aqui.

Na minha frente, iam dois corredores e eu apertava o passo na descida para não os perder de vista. Em dado momento do caminho, um staff informou que os dois deveriam virar à esquerda enquanto eu deveria seguir reto. Eram dois atletas dos 100 km. No caminho, fui alcançado por uma atleta e corremos juntos até encontrar a cidade novamente. Fátima era o nome dela. Estávamos bem. Só cansados.

Na cidade, encontramos um posto de hidratação meio improvisado. Não lembrava que haveria um posto naquela posição, mas tomei um copo de isotônico e segui. A Fátima ficou um pouco para trás, pensei em esperar para continuarmos, mas ela me disse para ir em frente. Fui.

Segui até uma rua sem saída. Ruas sem saída em corrida de trilha só significam uma coisa: entrar na trilha novamente. No final da rua havia um staff. Quando cheguei, parei para descansar com as mãos no joelho e percebi que era um garoto muito jovem. Novinho de tudo. Se tinha 14 anos deveria ser muito. Então ele começou a conversar comigo.

“Está tudo bem”?
“Tudo bem. Só estou bem cansado”.

Então ele me olhou diretamente nos olhos e disse algo extremamente profundo:

“Sim, sei como é”.

Eu ri bastante por dentro. Aquele jovem senhor que, quando ia ao banheiro gritava “mãaae, termineeeei” estava me dizendo que sabia como era estar cansado depois de correr 23 quilômetros em trilha. Foi engraçado.

Tudo bem. Que bom que ele já sabia. Tomara que supere isso e se torne um grande corredor um dia. Quem sabe já não o é. Então ele indicou que eu deveria seguir à direita e logo após subir à esquerda. Agradeci e fui embora sorrindo.

Essa subida, apesar de ser a mais alta até o km 50, não foi mais difícil que as anteriores, mas era mais cansativa e longa. Era meio que uma estrada de terra abandonada ou há muito não visitada por carros.

A noite estava muito estrelada. Em algum momento aproveitei e parei um segundo, desliguei a lanterna, olhei todo o breu ao meu redor e olhei para cima. As estrelas eram tantas e tão brilhantes que posso me arrepiar mesmo agora, dias depois. Um ultramaratonista, no breu, olhando para o pequeno trecho de universo que ele pode conhecer. Soltei um pequeno “uau” para a Via Láctea, liguei a minha lanterna e voltei para o meu caminho.

A Fátima me alcançou, me ultrapassou e seguiu em frente. Subidas me cansam muito. Eu continuei subindo com as mãos no joelho. Até que vi um galho que poderia servir como trekking pole. Pensei que poderia ajudar a aliviar meu cansaço, peguei e passei a utilizar. Trekking pole é uma espécie de bastão que ajuda o corredor ou alpinista a cumprir seus objetivos. Eu nunca havia usado trekking pole e achei bem eficiente. Consegui recuperar forças e seguir adiante. Um pouco mais à frente, encontrei outro galho e agora eu tinha ajuda dos dois lados.

Ao final da subida já se iniciou a descida. É incrível como uma subida leva duas horas e sua descida leva 5 minutos. Não dá nem para aproveitar. No final da descida havia um posto de hidratação com água, Coca-Cola, isotônico, frutas, doces, salgados, uma sopa quente de macarrão sem glúten e café quente, além de atendimento médico.
Aqui abasteci minha mochila com água, tomei uma sopa, isotônico e café. No posto estava o Ernesto:

“Oi, Francisco, como está”?
“Bem, cansado. Essa última subida foi bem difícil psicologicamente”.
“Verdade, eu acho que exagerei um pouco até aqui. Vou tentar diminuir de agora em diante”.

E se foi. Eu continuei para terminar de me alimentar. No canto direito do posto, sentados em cadeiras de plástico que ficavam em todos os postos, 4 ou 5 corredores de 100 km, ou de 100 M, não me lembro direito. Uma senhora do posto chamou um staff que tinha camiseta vermelha (equipe médica):

“Você é equipe de resgate, né”?
“Sim”.
“Aqueles ali, vão desistir”.

Se fossem atletas de 100 km, deveriam ter corrido cerca de 40 a 50 km até o momento. Se fossem de 100 M, já estariam por volta do km 90. Aquele era meu km 28. Dali até pouco antes do km 40 seria plano em estrada. Eu voltaria a este posto na volta, quando estivesse com 50 km de prova. Ajustei minha mochila e fui embora.

Saí trotando e acelerando aos poucos, bem cansado. Ultrapassei um corredor que sustentava trekking poles nas mãos e caminhava. Alguns minutos depois esse mesmo corredor me ultrapassou com muito mais vigor do que eu quando cruzei com ele. Entendi que andar um pouco pode ajudar a descansar mesmo em movimento.

De quando em quando eu olhava para o relógio para ter noção de que quilômetro estava, conferir meu ritmo e verificar as horas. Eram por volta das três da manhã. Pensar nas horas me fazia sentir algo realmente especial. Eu já havia corrido provas noturnas, mas passar a noite correndo eu sequer havia imaginado que faria um dia e ali estávamos eu e mais um monte de loucos.

Cheguei no próximo posto. Ficava no km 34. Sentei, tomei uma sopa de lentilhas. Reabasteci minha mochila com água. Comi umas tortinhas de frango. Um rapaz chegou e não foi para as comidas ou água. Se posicionou num canto afastado e sentou no chão. Sentar é jeito calmo de dizer que ele se jogou sem forças no chão. Prontamente, a equipe médica da ambulância que estava neste posto foi atendê-lo. Não pude ficar para acompanhar e saber se ele ficou bem. Arrumei tudo e segui em frente.

Dessa vez eu saí caminhando. Combinei comigo mesmo que andaria o próximo quilômetro, descansando em movimento. Dois corredores me passaram e abriram vantagem sobre a minha posição. O primeiro desapareceu e o segundo eu ainda via à minha frente, mesmo que longe, quando comecei a correr.

Comecei com um ritmo de 7 minutos por km. Percebi que o corredor da frente estava se aproximando e olhando para o relógio, pude verificar que meu ritmo estava melhor. Quando ultrapassei o rapaz, estava melhor ainda. Começou a perseguição ao primeiro corredor e não demorei muito a ultrapassá-lo. Descansar caminhando ajudou muito a recuperar a força nas pernas e pulmões.

Então passei a correr sozinho e forte. Me sentia muito bem. Os carros iam e vinham pela estrada enquanto o corredor que ficou para trás desaparecia da minha vista, mesmo na estrada reta. Abri muita vantagem.

Eu corria pela contramão, pela calçada ou no canto da estrada, não na pista. Eis que, neste momento, passou uma picape pela pista que ia no mesmo sentido que eu, do outro lado da estrada. O motorista emparelhou comigo na mesma velocidade que eu, pôs o braço e a cabeça para fora e começou a gritar:

“Aêeeee”.
“Aêeeee”.
“Vai lá, Tobiaaaasssssss”.
“Primeiroooooooooo”!

Eu comecei a rir e fiz sinal de positivo com a mão. Ele só parou após o meu sinal. Então voltou para direção e foi embora buzinando. Quem diria que eu encontraria um fã no meio da estrada depois das 4 da manhã. E quem diria que ele saberia que meu nome secreto de corredor é Tobias? Incrível. Grande beijo. Obrigado pela torcida e pelo incentivo.

Segui até o próximo posto. Ficava no pé de uma subida em estrada de terra. Quando cheguei, conversei com os staffs.

“Bom dia”.
“Nossa, é mesmo. É bom dia.”.
“Sim, já são cinco da manhã”.

Era o quilômetro 40. Eu segui em frente enfrentando várias subidas e descidas curtas. Dava para ver o céu perdendo um pouco da escuridão. Três corredores de 100k me ultrapassaram com muita alegria nas pernas. Estavam bem, fortes e foram embora.

Em seguida voltei para a trilha e continuava subindo e descendo. Numa dessas descidas encontrei com um corredor de 80k com sotaque carioca. Ele descia praguejando e xingando as pedras, a lama, os galhos caídos, a terra, ou basicamente, tudo.

Eu o ultrapassei e logo em seguida a descida terminou na praia.

Já eram 45 quilômetros de corrida. Pouco depois das seis da manhã.

Foi quando o sol nasceu.

 

Antes de desistir
A corrida continuou na praia. Era um trecho curto. Surgiu um canal de um rio que descia da montanha para o mar. Pulei por sobre ele e quando pousei, senti fortes câimbras endurecendo ambas as pernas. Tive que andar um pouco para me recuperar.

O rapaz com sotaque carioca me ultrapassou e logo em frente começou uma subida forte. Com novas dificuldades por conta das câimbras fui subindo sem perder o ritmo possível. Bebendo água e me alimentando.

Me aproximei e ultrapassei duas moças que subiam mais cansadas que eu. A primeira me deixou esperando bastante tempo antes de me dar passagem. Foi ruim esperar, mas de certa forma, me ajudou a descansar.

Quando a descida começou novamente, encontrei mais uma vez o rapaz que xingava, mas dessa vez ele estava em silêncio. Ultrapassei e continuei descendo pela trilha até que ela virou uma estrada de terra.

Dois staffs em volta de uma fogueira apagada me informaram o caminho a seguir e eu fui. Um pouco mais à frente, havia uma bifurcação no caminho onde se continuava na estrada ou entrava numa trilha. Eu parei para verificar se conseguia observar algum refletivo ou faixa da prova. Não encontrei, mas quando olhei para a esquerda, vi um pai e uma filha subindo a estrada.

“É por aqui”!
“Ah, obrigado”.
“Parabéns, guerreiro. Boa sorte”!

Pude ouvir ainda ele explicando para a filha que eu era um corredor e que havia corrido a noite inteira.

No que parei para entender o caminho, a moça mais à frente da dupla que encontrei na subida me ultrapassou. Mais um pouco de descida e chegamos a um terreno plano. Uma curva à direita e encontramos um posto hidratação.

Era o mesmo posto que encontrei no km 28. Isso significava que eu estava no km 50 pela segunda vez na minha vida. A primeira e única até o momento havia sido quando corri minha primeira ultramaratona, 50 km na Ultra Fiord 2017. Lá na Patagônia Chilena, no frio e na neve. Esse clima agora era só uma lembrança. O sol aqui estava se fortalecendo e, diferente das temperaturas ótimas para se correr nos dias anteriores, hoje o dia seria muito quente.

Na Patagônia, cheguei aos cinquenta quilômetros com 10 horas e 33 minutos. Cheguei ao posto e nos 50 km com 9 horas e 44 minutos. Tempo melhor ou apenas climas e pisos diferentes, fora o fato de aqui ter corrido à noite.

Como agora já era dia, achei conveniente avisar meus familiares que estava bem. Decidi que faria isso a cada dez quilômetros, sempre que parasse num posto de hidratação. Peguei o celular, desativei o modo avião e mandei uma mensagem de texto.

“50k. OK”

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Neste ponto, encontrei o Ambrósio. Bastante cansado de sua corrida de 100k. Perguntei se estava bem e desejei que tivesse uma boa corrida até o final.

Começava então a maior subida da prova e, por incrível que pareça, não pareceu tão ruim quanto a imaginei. Subi com bastante dificuldade, claro, mas nada muito grave ou pior do que já havia vivido e vale considerar que agora eu já tinha corrido mais de cinquenta quilômetros.

Em seguida já iniciou a descida. O piso era de um barro seco com muitos galhos soltos, quando não de pedras e barro molhado mesmo.

Três corredores de 100 km passaram por mim e seguiram juntos à minha frente durante um tempo. Quando o líder acelerava, os demais aceleravam. Quando diminuía, os demais o seguiam. E assim foram até que os perdi de vista no meio da trilha.

Essa descida terminou numa praia já com sol a pino no km 55. Não era uma praia muito populosa. Vi um casal ou mãe e filha na areia em frente a cada uma das grandes casas à beira-mar.

A corrida na areia durou cinco quilômetros que não acabavam nunca. Talvez tenham sido os maiores cinco quilômetros que eu corri na vida. Ou talvez tenha sido o primeiro sinal do grande cansaço que eu estava sentindo.

Foi nessa praia que comecei a sentir algo que nunca senti na corrida.

Eu estava com assaduras. Sim. Assaduras.

Quando comecei a correr, cerca de seis anos atrás, nas esteiras da academia perto de casa percebi que quando eu corria um certo tempo, minhas coxas ficavam assadas de tanto bater uma na outra durante os movimentos de corrida. Rapidamente eu comprei um short que fica colado na pele e não tive mais este tipo de problema. Desde este acontecimento, isto nunca mais se repetiu. O short colado virou equipamento obrigatório para meus treinos e corridas.

Com pouco mais de cinquenta e cinco quilômetros de corrida, eu estava com assaduras na virilha, nas duas pernas. Estava bem difícil correr ou andar. Ardia bastante. Na minha cabeça, a matemática não me deixava esquecer.

“Faltam mais de 25 quilômetros”.

Segui até o próximo posto, no fim da praia, no quilômetro sessenta. Ali estava o drop bag que os corredores poderiam ter deixado com a organização com pertences no dia anterior. Era possível deixar um tênis extra, meias limpas, remédios ou o que quer que fosse. Eu deixei amendoins salgados e protetor solar.

Não tenho um tênis de trilha extra ou meias de trilha extra e comecei seriamente a pensar em tê-los para uma próxima corrida desse tipo.

Um senhor se sentou do meu lado enquanto eu comia. Claudio o nome dele. Pegou seu drop bag e trocou tênis, meias e camiseta.

Tirei o celular do modo avião.

“60k. Não tão OK”

Comi, tomei isotônico, reabasteci minha mochila de água e voltei para a praia. Diante de mim estavam os corredores do percurso de 21 km. A largada deles seria aqui e eles falavam admirados de mim e do Claudio, quando identificaram que éramos corredores de 80 km.

Quando a praia terminou, começou uma subida de trilha para a esquerda. Era uma trilha turística e na subida, me encontrei com vários populares passeando por ela. Famílias, amigos e namorados. Alguns davam passagem para os atletas. Para outros, eram os atletas que tinham de dar passagem. Não entendi muito bem porque a organização fez o atleta passar por isso. Digo, se o atleta estava atrapalhando uma rota de passeio, vejo duas alternativas, ou não se utiliza essa rota para corrida ou impede-se a entrada de não corredores.

Essa subida foi bem forte e quente.

No caminho parei e pus as mãos nos joelhos. Claudio chegou até onde eu estava.

“Pode passar”.
“Não, você não vai desistir. Vamos juntos”.

Agradeci e assim fomos. Sofrendo a subida juntos. Descendo vinham vários corredores, o que nos fez perceber que ao atingir o cume deste ponto desceríamos de volta.
Encontrei o Ernesto e o Marcelo descendo. Nos cumprimentamos e desejamos bom final de prova mutuamente.

Lá no alto, no topo, haviam staffs da organização anotando os números dos atletas e o horário que chegavam. A água da minha mochila estava quente. Perguntei se tinham água e tinham. Era o km 63.

Um rapaz com uma caixa térmica tinha garrafas de água e as entregava aos corredores que solicitavam. Estava gelada e deliciosa.

“Moço, se estivesse vendendo essa água, poderia cobrar R$ 20,00 aqui em cima que eu pagaria”.

Bebi e comecei a descida, sempre acompanhado do Claudio, dando licença para os corredores que subiam e desviando dos populares passeantes. A descida foi bem extenuante. Eu estava bastante cansado.

Quando a trilha voltou, começaram a passar os líderes da prova de 21 km. Eles corriam com tanta força e velocidade que a chance de esbarrarem em mim ou no Claudio, nos derrubarem ou caírem ou que qualquer um de nós se machucasse era grande, a ponto de, sempre que eu ouvia um veloz corredor de 21 km se aproximando eu avisava para que Claudio, assim como eu, liberasse passagem.

A ideia da organização da prova era simples: que todos os corredores, de todas as distâncias terminassem muito próximos a prova e no mesmo lugar. Dessa maneira, foram organizados largadas e percursos. O ponto negativo nessa decisão foi justamente o conflito de capacidade física de alguém que acabou de largar para 21 km versus alguém que largou para 80 km no dia anterior.

Fomos muito atrapalhados nessa parte. Ou atrapalhamos muito os demais corredores.

Fui dosando a água da minha mochila para que durasse até o próximo posto de hidratação, que deveria vir próximo do km 66.

Minhas assaduras estavam ardendo muito e cada vez piores.

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Em um momento de passagem, levantei a perna do short até poder ver a situação da minha virilha. Oque eu vi? Carne viva.

Ver aquilo derrubou muito meu pouco ânimo e meu deu muito medo de pensar que ainda faltavam vinte quilômetros. Como eu estaria no final? Se é que eu conseguiria chegar até lá...

Claudio começou a distanciar-se um pouco. Ou ele tinha mais forças ou eu as perdia.

Foi quando começaram a passar por mim os corredores de 12 km. Era uma subida forte e quente.

Cheguei ao local onde estaria o posto do km 66 e ele não estava lá. Eu estava exausto, sofrendo muito com sol e minha água estava acabando. Era uma subida bem íngreme. Alguns carros sofriam para subir. Eu parei e pus as mãos nos joelhos. Tudo doía. O calor era forte.

Uma moça parou para me auxiliar.

“Você está bem”?
“Sim, só estou cansado”.
“Nossa, você é dos 80 km”.

Então ela me colocou de pé, pôs a mão na minha mochila e começou a me empurrar ladeira acima. Eu nem queria mesmo subir aquilo, mas achei de uma generosidade enorme este feito. Era uma moça dos 12 km. Seu nome era Viviane.

Eu expliquei para ela que estava com pouca água e que o posto de hidratação não estava no local em que deveria. Ela me acompanhou subida acima. Parou para tirar uma foto e depois continuou me levando. Olhei o meu relógio para conferir em que quilômetro estava e ele havia apagado. A bateria havia acabado.

Um pouco à frente, estava um staff informando que deveríamos virar à direita.

“Onde está o posto”?
“Em quinhentos metros”.

Quinhentos metros se passaram e nada de posto.

Até que, mais ou menos, no quilômetro 68 ele apareceu lá no final da subida. Eu poderia beber água, abastecer a bolsa e continuar.

Quando eu e Viviane chegamos lá, não havia ninguém dentro. Nem nada. Diferente dos outros postos, onde sempre havia corredores, garrafões de água, isotônicos e frutas. Esse não tinha nada. Sentado na frente do posto, o staff responsável pelo mesmo.

“Não tem água. Acabou às três da manhã. Eu pedi, mas ninguém me trouxe”.

Sentei desacreditado. Eu tinha dois goles de água na mochila. Pedi para que a Viviane seguisse com sua corrida. Eu descansaria e continuaria em breve. Ela se foi.

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Mais pessoas de 12 km foram chegando, perguntando sobre água e ficando revoltadas por não ter hidratação na metade do seu percurso. O staff também começou a ficar exaltado e nervoso. Eu estava sentado vendo isso e sofrendo bastante pelo calor, esforço e assaduras.

Então algumas pessoas invadiram a barreira de cadeiras que fechava o posto onde eu estava sentado. O staff gritou e todos começaram a se exaltar. Uma senhora que invadiu o posto encontrou gelo e, vendo o meu estado, me ofereceu. Aceitei. Coloquei uns dois punhados de gelo na mochila e continuei a subida.

Fiz uma curva à esquerda ainda subindo.

Mesmo de longe, de cinquenta a cem metros à frente e sem o posto vazio no campo de visão, eu pude ouvir os gritos da discussão inflamada entre o staff e as pessoas que queriam água.

Então ouvi um carro queimando pneu.

Quando passou por mim na subida, o staff estava dirigindo seu carro com violência e eu me reservo o direito de dizer que estava muito cansado, com sede e com sol na cabeça e posso ter me enganado. Salvo isso, poderia dizer que o rapaz jogou o carro para cima dos corredores.

Felizmente foi só isso. Não vi ninguém ser atropelado.

Toda a organização havia sido fantástica até aqui. Tive água, comida quente, café, frutas, salgados e isotônico à noite toda. Tanto que cheguei a me perguntar se eu precisava levar uma mochila com água e comida.

No momento em que eu mais precisei ocorreram falhas na organização que podem ter ajudado a prejudicar a minha prova. Fora o fato de que alguém poderia ter sido atropelado. Lamentei muito tudo isso.

Continuei a subida andando. Minha água havia acabado e o gelo que derreteu rapidamente não rendeu muito. Cada passo pesava muito e cansava mais.

No final da subida começou uma descida de paralelepípedos, mas eu não conseguia correr. Mesmo aqui. Eu desci andando e quase sempre parava e colocava as mãos nos joelhos. No meio da descida sentei numa rara sombra no caminho. Esperei uns dois minutos e continuei. Mais um pouco caminhando e consegui ver o final da descida.
No final, vi um grupo de pessoas ao lado direito da rua. Com garrafas na mão elas ajudavam os corredores.

“Aqui, água”.
“Bebam água, joguem na cabeça”.
“Ficamos sabendo que não tinha água lá em cima”.

Parei, bebi. Joguei água no meu rosto. A água estava quente e era de alguma torneira, mas era água. Abasteci minha mochila e continuei minha caminhada.

Dez metros depois, um staff indicou para virar à esquerda e seguir na calçada. Eu agradeci, virei à esquerda, olhei o caminho sob o sol à frente e soube que eu não conseguiria.

Virei para o staff.

“Você tem um rádio aí”?
“Não. Está tudo bem”?
“Eu não aguento mais. Vou desistir”.

Era o quilômetro 70.

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Depois de tudo
Voltei até as pessoas que estavam distribuindo água e sentei ao lado delas. A maioria me rodeou perguntando o que havia.

“Vou desistir”.
“Desistir? Está machucado”?
“Estou com muita dor e cansaço”.

Uma moça se abaixou à minha frente.

“Sente as panturrilhas”?
“Também”.
“Consegue tirar as meias de compressão”?

Desapertei o cadarço do tênis e tentei tirar, mas tudo doeu. A moça fez que ia pôr a mão para tirar o tênis, mas não deixei. Meu tênis estava bem podre e ela estava toda arrumada. Tirei o tênis e a meia.

“Descanse e se recupere, você tem mais quatro horas para terminar. Faltam apenas 12 quilômetros”.

Fiz isso.

Várias pessoas iam terminando a descida e bebendo a água do grupo. Uma moça chegou e começou a chorar bastante. Outro rapaz descendo era o Ambrósio. Perguntou se eu estava bem. Eu disse que estava mal, mas que tentaria continuar depois de descansar.

As pessoas que estavam ajudando se dividiram, duas continuaram ajudando os corredores e os demais disseram que estavam indo para a chegada para ver os corredores.

“Te esperamos lá, Francisco”.

Comi um queijo, bebi mais água, calcei as meias e tênis, guardei a meia de compressão na mochila e me levantei.

Então eu segui. Caminhando e sofrendo.

Meio quilômetro depois saí do calçadão e desci para a praia.

O próximo posto de hidratação estaria no quilômetro 75. Seriam 5 quilômetros com água quente, dores e assaduras.

Na praia, a areia estava fofa, o que dificultou bastante e deixou tudo mais pesado. A praia estava cheia, diferente da anterior. Muitas pessoas brincando e se divertindo com seus filhos e famílias.

De quando em quando era preciso cruzar um canal de água que despejava no mar. Isso molhava os tênis e as meias. Até que chegou um canal que não molharia apenas meus pés. Eu nem conseguia ver o fundo. Do outro lado dele estava um staff.

“É fundo”?
“Na altura das coxas”.

Comecei a pisar as pedras para descer. Quando pisei na última pedra, já dentro d’água, meu pé escorregou e eu caí sentado dentro da água salgada. Minhas assaduras agradeceram. De agora em diante tudo seria bem pior com o sal.

Levantei e continuei. Atravessei o canal, subi as pedras do outro lado e voltei para a areia. Foram uns três quilômetros caminhando na areia.

Alguns fotógrafos me encontraram pelo caminho. Eu tentei convencê-los de que essa foto seria muito vergonhosa e que não havia necessidade. Não adiantou. Cada um tirava umas vinte fotos.

A praia era curta nesse trecho e não tinha como fugir da onda que se estendia sobre a areia. Em cada uma delas meu tênis e meia enchiam mais de areia e água do mar.

No final da praia, saí para um calçadão em obras. As ruas estavam em obras também. Cada carro que passava levantava muita poeira. Eu consegui sentir a areia nos lábios.
Antes da próxima subida, já no asfalto, um staff da organização oferecia água.

“Não é potável, é só para refrescar, já ajuda”.

Joguei sobre a cabeça e segui meu caminho. Essa água cheirava a não sei o que. Não direi que era esgoto uma vez que provavelmente meus sentidos estavam bastante prejudicados.

A subida de asfalta foi bem dura e até perigosa. Os carros passavam muito perto dos corredores ou, na verdade, os corredores estavam correndo na rua no lugar onde devem estar os carros.

Depois da subida comecei a descer. Caminhando e sofrendo e seguindo a canção. Não queria nem imaginar como estava a carne viva que vi na minha perna no quilômetro 60.

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Quando a descida terminou, andei mais cerca de um quilômetro até chegar ao posto de hidratação. Cheguei, sentei. Pedi um isotônico, bebi. Depois bebi água gelada. Abasteci a bolsa. E fiquei sentado comendo.

Ao meu lado sentou um rapaz chamado Neivo. Ele estava correndo 100k e estava tão ruim quanto eu. Uma senhora o ajudava. Não consegui lembrar o nome dela. Ela trazia água, comida, isotônico para ele. Jogava água na cabeça e dizia que iria conseguir.

Essa senhora era dos 50k. Pelo que entendi, o marido dela também era dos 50 e estava correndo, mas estava para trás.

Assim como adotou o Neivo, a senhora me adotou e passou a cuidar de tudo que eu quisesse. Assim como o grupo anterior, ela disse que eu não poderia desistir. E que agora faltavam apenas 7 quilômetros. Levantamos todos. Eu, Neivo, a senhora e mais um senhor. Saímos do posto de hidratação e entramos na praia.

Muito facilmente, eu fiquei para trás.

“Vejo vocês na chegada”.

Continuei caminhando e sofrendo.

Neste momento, e talvez há alguns quilômetros, meus pensamentos focavam no meu estado.

Eu estava quebrado. Quebrado é um termo que utilizamos na corrida quando queremos dizer que o corredor atingiu algum limite físico onde não tem mais condições de continuar.

Eu havia quebrado lá pelo quilômetro 65. Agora faltavam 5 quilômetros e pouco. Comecei a pensar numa discussão que vi outro dia em um dos grupos de corrida de que participo.

“Corredor que quebra não merece medalha”.
“Esses caras quebram e tem coragem de dizer que são ultras”?
“Só para postar no Facebook”.
“Vergonhoso. O melhor seria desistir e se preparar de verdade”.

Todas essas frases e pensamentos eram de pessoas que me eram caras e que eu levava em alta conta. Estava realmente chateado de desapontar meus amigos. Isso doía muito mais do que estar com assaduras há mais de 20 quilômetros.

Fiquei na dúvida se deixaria a pessoa da organização colocar a medalha no meu pescoço, como é de praxe, ao final da corrida. Eu não merecia essa medalha. Eu não corri 80 quilômetros.

Isso tudo me deixou mais abatido que as dores e a quebra.

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Começou então uma trilha em subida. Era a última. Subi conversando com uma moça muito simpática da prova de 12 km que me acompanhou. Fabiola o nome dela. Ela estava tão cansada quanto eu. Disse que era a bronquite, mas não aceitou minha bombinha (eu levo minha bombinha para o caso de ter uma crise).

Em algum momento, porque ela parou para tirar uma foto ou porque eu conseguia subir melhor, acabei continuando enquanto ela ficou para trás.

No final da subida, encontrei duas moças ajudando um senhor deitado no chão. Perguntei se precisavam de ajuda e não precisavam.

Quando passei, uma das moças decidiu seguir e um pouco depois pudemos fazer a descida toda juntos. Essa moça era a Juliana. Ela ia correr 21 km, mas passou por problemas na última semana e trocou a prova para 12 km.

Me ajudou bastante ter alguém para conversar enquanto descia a trilha. Era o final da minha prova. Expliquei a ela como estava me sentindo com relação ao valor da medalha. Ela entendeu, mas discordou. Quando a trilha acabou, ela seguiu em frente e eu fiquei para continuar sozinho. Faltavam dois quilômetros agora.

No final da praia, a última subida ocorria dentro de um hotel. Entrei e subi. Voltei para o asfalto. Já era a avenida em que estava o calçadão do pórtico.

Um staff orientou que eu continuasse no calçadão e assim fiz.

De duzentos a trezentos metros antes eu consegui ver o pórtico.

Quando me aproximei cerca de 50 metros, a senhora que ajudou ao Neivo e a mim se aproximou. Pegou firme na minha mão e tentou me fazer correr os últimos metros.

“Vamos, Francisco. Você consegue”!
“Eu não consigo mais correr”.
“Consegue sim”!

Mas não conseguia mesmo. Minha voz ficou bastante embargada, mas eu continuei.

“O Neivo conseguiu”?
“Sim”.
“Seu esposo conseguiu”?
“Sim”.

E segurava minha mão com tanta força que eu me senti agradecido.

As pessoas em volta começaram a gritar encorajamentos, aplaudir e assoviar.

“Força, guerreiro”!

No lado esquerdo, em um bar ou varanda, não sei direito, alguém gritou meu nome.

“Vai, Francisco! Você consegue”!

Meus olhos se encheram de lágrimas. Quando cheguei a cinco metros do pórtico, a senhora soltou minha mão. As moças estenderam a faixa da chegada. O narrador anunciou.

“Mais um corredor chegando. Parabéns Francisco. Guerreiro. Parabéns”!

Eu sei, ele deve dizer isso para todos.

Estendi meus braços, peguei a faixa com as mãos, levantei no alto.

Chegavam ao fim os maiores 82,5 quilômetros da minha vida.

Meu nome é Francisco Avelino.
Eu tenho 35 anos e sou ultramaratonista.
Ultramaratonista amador. Mais amador que ultramaratonista.

O homem que não dá valor às suas derrotas jamais será merecedor de uma vitória.
Corra Por Dentro.

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Serviço
Indomit Costa da Esmeralda 2017
28.10.2017
Porto Belo (SC)
www.indomit.com.br
Francisco Avelino
Por Francisco Avelino
06 Nov 2017 - 09h42 | sul | Trail Running
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