Dia 30 de dezembro voei pra Santiago do Chile pra uma viagem de bike pelos Andes do centro norte da Argentina. A ideia era pedalar uns 2.500 quilômetros pelas estradinhas da borda oriental da Cordilheira dos Andes e no caminho ir escalando alguns dos picos mais isolados e altos da região. O mais conhecido era o Cerro Plata, na provincia de Mendoza, que iria conhecer e me encantar com a região, além de servir para aclimatar para os picos mais altos ao norte.
Em seguida toquei rumo norte pro Cerro Mercedario, colosso de 6.770m na provincia de San Juan. Mais ao norte ainda, o mais alto e isolado da viagem: o vulcão Ojos del Salado, na belissima e selvagem provincia de Catamarca. É o vulcao mais alto da Terra e o 2º ponto mais elevado das Américas e do hemisferio ocidental, com 6893 metros.
1ª parte: Cruzando os Andes rumo ao Cordon del Plata
Voei de BH para o Chile com a bike na bagagem e a esperança por grandes aventuras pelos Andes. Além da viagem de bike por algumas das miticas estradas argentinas, as montanhas eram outro grande objetivo da empreitada!
A logistica para sair foi um pouco complicada: com equipamentos de alta montanha e outros para o dia a dia da viagem de 70 dias, a bike estava pesando algo em torno de 50kg. Haja perna e paciência para pedalar lenta e penosamente pelas montanhas.
Fiz o 1º "Cruce de Los Andes" na região do Parque Provincial Aconcágua e passei o reveillon com uma galera massa no Hostal La Vieja Estacion, em Puente del Inca. Começar o ano com a energia das montanhas foi como acordar num sonho muito bom.
1º cume: Cerro Plata – Estava a caminho de Vallecitos, onde existem alguns refúgios com estrutura e chegam carros. Dali começaria a ascensão do Plata. Subindo com dificuldades com a bike ultra pesada, passa de carro a Fernanda Maciel, indo se aclimatar para tentar o recorde do Aconcágua. Coincidencias de quem ama as montanhas!
Em Vallecitos (2800m) a previsão do tempo não estava boa para os próximos dias na montanha, mas decidi subir assim mesmo. Fui direto para o acampamento El Salto (4200m), de onde tentaria o cume no dia seguinte.
No dia 04 de janeiro, às 6h da manhã saí da barraca com o tempo semi-aberto. Fui subindo, atravessando alguns campos de neve até chegar a Portezuelo, a 5100m. Ali o tempo fechou totalmente, começando um forte vento frio.
Cheguei na crista final e vi o cume, que não parecia muito distante. Mas a inclinação da subida aumentou e quando faltavam 400m verticais para o topo, eu estava acabado. Deitei-me um pouco tentando me recuperar para não ter que desistir estando tão perto. Olhei pra trás e um alemão que vinha subindo tinha dado meia volta e estava descendo.
Pensei em subir só mais um pouquinho e devagar fui ganhando altitude. Até que cheguei nos destroços de um helicóptero, onde eu sabia que faltavam só 70m verticais até o cume. Fiquei feliz demais porque sabia que dali em diante nada me impediria de chegar ao ponto culminante do Cordon del Plata.
7h depois de sair da barraca, tendo pelejado imensamente, eu estava no cume. O tempo fechado me impediu de ter a vista que dizem ser espetacular. Mas nem me importei, estava feliz demais e só queria comemorar. Depois de curtir um pouco aqueles momentos, desci para El Salto em 3h, e depois de comer e beber, apaguei na barraca "quentinha".
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2ª parte: Rumo norte ao Mercedário
Peguei a bike de novo e segui rumo norte nas lindas e isoladas estradinhas que vão bordeando a Cordilheira dos Andes, sempre com montanhas impressionantes à esquerda (oeste) e um vale desértico a leste.
Indo de bike em direção a Mercedário
Acampei 2 dias em Barreal (1500m) na província de San Juan, para descansar e pegar detalhes da rota para o Mercedário, de 6.770 m, o 8º maior pico das Américas. Comecei a aproximação com 90 km de bike e depois de 15h com alguns problemas (um dos bagageiros quebrou e tive que voltar pra soldar), cheguei aos 3.200 m da Laguna Blanca, 1º acampamento. Tinha uma subida final de 1.000 m em 6 Km que acabou com minha moral e cheguei além da exaustão. Dormi sem comer nada.
No dia seguinte, tendo deixado a bike em Laguna Blanca, subi curtindo as paisagens belissimas ate a base da Cuesta Blanca, a 4200m. Acampei ali aproveitando a última parte de água corrente na montanha. A ausência de ventos também fazia dali um lugar ideal antes de encarar a dureza mais acima.
3º dia e comecei de cara subindo a Cuesta Blanca: esta é a parte mais técnica da escalada: um paredão de 400m de gelo bastante inclinado e pela primeira vez tive que colocar crampons e usar a piqueta. Fora a exigência fisica altíssima.
Depois de 3h cheguei a uma espécie de platô acima da parede gelada e caminhei mais 2 horas montanha acima para chegar em Pirca de Indios Inferior, acampamento a 5200m e de onde tentaria o cume. O lugar é espetacular: um grande "anfiteatro" de paredes de gelo com um glaciar enorme na borda. E eu totalmente sozinho na montanha. Sensações indescritiveis.
Vista da Cuesta Blanca
Às 3h da manhã do dia 12 de janeiro saí da barraca num vento desmoralizante pra tentar o cume. Com um força descomunal, o frio que ele trazia penetrava em cada parte do corpo e foi minando minhas energias ao longo do dia. Fui subindo e torcendo pra amanhecer logo, mas o sol, que aparece às 6h30, nao trouxe nada de alivio. Desta vez o frio ia me atormentar o dia inteiro.
Em um momento tive que me esconder atrás de umas pedras verdes e tirar as 2 botas para massagear os pés e tentar fazer voltar a sensibilidade, porque há um tempo eu já não os sentia. Depois de meia hora nesse processo recomecei e atravessei um colo que me levou a outra vertente da montanha.
Acampamento na Pirca Inferior
Dali vi o 1º de uma série de ilusórios falsos cumes, mas fiquei feliz porque estava evoluindo bem. Fui subindo lentamente até que num certo ponto, aniquilado, decidi deixar pra trás a mochila para subir mais leve (nesta altitude qualquer peso "pesa" muito mais).
Com uma determinação feroz, muito acima da capacidade fisica, fui devagarzinho vencendo o vento que me assolava cada vez mais forte e não deu trégua em nenhum momento ao longo dia. Às 13h, finalmente e exultante de alegria, cheguei ao cume do Mercedário, coroando um dia de esforços sobre-humanos.
Céu limpo, vistas espetaculares. Sentei chorando emocionado, pensando no duro que tive que dar para estar ali e fui presenteado com aquela vista!
Cumer do Mercedário
Ao sul, imponente e muito acima de todo o resto, estava o Aconcágua. Ao norte se espalhava a Cordilheira da Ramada, com vários e varios picos acima de 6 mil metros, destacando-se também o lindo Pico Ansilta. Absurdo de tão lindo. Só mesmo o vento que queria porque queria ser feio (risos), mostrando-se ainda mais violento no cume e me "expulsou" daquele paraiso.
Fui descendo a montanha, agora empurrado perigosamente para frente pelo vento, e 4h depois cheguei à barraca, totalmente sacudida. Como pude, dei uma arrumada de leve e entrei, indo dormir sem comer nem beber nada. Apaguei.
Descendo a montanha pós-cume
Na outra manhã o vento ainda persistia em me arrasar e depois de penar pra desarmar as coisas, desci até a bike e me esforcei para chegar no mesmo dia em Barreal, onde fiz uma pizza espetacular e tomei uma merecidissima cerveja "Los Andes".
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3ª parte: Isolado no Vulcão Ojos del Salado
Entre Barreal e Fiambala, cidade base do Ojos del Salado, pedalei através de desertos por 750km. Paisagens exuberantes e estradinhas surreais foram dando alivio ao calor extremo dos dias de pedal. Num certo dia o termômetro marcou 48ºC.
Estava agora rumo norte na mitica Ruta 40 e encontrei diversos cicloturistas pelo caminho. Sempre parávamos para trocar idéias e aproveitar para retomar o folego.
Cheguei em Fiambala e acampei no Camping El Paraiso, cheio de uvas, amoras, figos e girassóis. Faz muita justica ao nome! Um dia de descanso e comecei a subir os 120km de asfalto da RN60, mais uma estrada de sonhos que vale a pena demais conhecer.
RN 60
No platô (chama-se Puna por aqui), a 3000m, montanhas de todas as cores, vicunhas (parentes das lhamas), raposas e lebres completavam a paisagem da estrada quase deserta. Saí da estrada numa trilha que virou areal e decidi abandonar a bike a 3500m, seguindo os restantes 60km até o campo base avançada a pé.
Esta era a montanha mais remota que eu tentaria subir e durante os 5 dias de expedição, não encontrei nenhum outro ser humano. Éramos só eu e a natureza selvagem!
Neste 1º dia fui até Águas Calientes, a 4200m. A trilha era muito arenosa e o progresso com as mochilas, pesando algo em torno de 40 Kg, era extremamente lento e dificil. Acampei às 22h, sob um céu com tantas estrelas como eu nunca tinha visto.
Acampamento em Águas Calientes
O 2º dia tinha promessa de ser extremamente seco, sem água nem gelo para derreter. Portanto, acordei e me hidratei o máximo que pude e saí levando 3 litros para a jornada.
Fui atravessando uma região desértica, com montanhas verdes, amarelas e vermelhas até que num campo de penitentes (pequenas "estátuas" de gelo) decidi acampar. Já vinha com 7h de marcha e os ombros estavam protestando horrores sob o peso das mochilas. Estava a 5100m.
Armei a barraca e fui pegar gelo para derreter, mas quando tentei acender o fogareiro, que tinha funcionado perfeitamente pela manhã, ele simplesmente não acendeu. Pelejei, desmontei o que deu sem ferramentas, descobri onde estava o defeito mas não consegui consertar. Grave contratempo. O que fazer? Desistir dali ou forçar um pouco e ver se encontrava água corrente mais acima na montanha?
Decidi forçar a barra. Ia ficar sem comida quente e cozida, mas se tivesse água eu ainda tinha uma pequena chance de cume. Nesta noite caiu uma tempestade de neve o tempo todo, baixando muito a temperatura e transformando tudo num universo branco lindo de se ver.
Na manhã seguinte saí determinado a chegar ao "Campo Alto", a 5800m, de onde se tenta o cume. Ao meio dia cheguei ao "Portezuelo Negro", de onde se tem a 1º vista para o Ojos. Sentei-me ali um bom tempo, tomado por muitas reflexões.
Vista do Ojos del Salado a partir de Portezuelo
Mais caminhada montanha acima e depois de passar por Arenales (onde se chega com veículos 4×4 por outra rota), encarei a subida final até o campo alto. Às 17h cheguei e fiquei duplamente feliz: o lugar era lindo e tinha água corrente. Na manhã seguinte eu tentaria o cume.
Comi bastante, guardando um pouco para a longa jornada de volta ao asfalto e me deitei às 19h, tentando dormir. O sono não veio. Fiquei de olhos fechados, viajando, até que 1h20 da manhã decidi começar a tentativa.
Às 2h já estava caminhando sob uma lua cheia que iluminava tudo: montanhas, glaciares, gelo, riozinho, todos cobertos por uma prateada inesquecível.
De cara, uma parede quase vertical de 600m. Fui subindo muito feliz por estar ali e às 5h30 estava quase no colo a 6400m. Aí o tempo virou. Ventania que por 4 vezes me jogou no chão, neve que batia com força no rosto e fui ficando desesperado. A coisa toda estava muito feia.
Com um último esforço cheguei ao colo e me joguei atrás de uma grande pedra. Imediatamente entrei no meu saco bivaque (espécie de barraca sem varetas) e me acalmei para pensar em minhas opções. Decidi esperar clarear o dia e coloquei 10h da manhã como limite para subir ou descer.
Me escondendo atrás de uma pedra para proteger do vento
Às 9h30 a tempestade pareceu amainar e decidi tentar subir. Tudo nevado, trilha difícil de seguir até que a 6600m ela sumiu de vez. A visibilidade era zero, dava para ver apenas que à minha frente tinha um paredão que subia e foi por ali que me meti. Pedras soltas, gelo, areia, altitude e a 6800m finalmente deu uma clareada e vi o cume! Estava muito perto. Mais pedras soltas e descansos a cada 2 minutos e eu estava lá!
O vulcão mais alto do mundo e a 2ª maior elevação das Américas estava sob os meus pés! Vista linda ao redor, picos de mais de 6 mil metros para todos os lados: o Pissis, o 3 Cruces, o Walter Plenck, o IncaHuasi, todas montanhas miticas pra mim e que estavam aos pés do Ojos del Salado!
Transbordando de alegria e satisfação, foi graças a uma vontade brutal de estar ali que eu tinha conseguido. Em Fiambala me haviam dito que "Hay que tener ganas" para subir o Ojos del Salado. E eu estava lá no topo! Pensei em todos os meus amigos, familia, no meu pai que certamente estavam ali comigo e meus olhos lacrimejaram.
Sentei e chorei baixinho. Depois levantei os olhos para me maravilhar com o universo e sua energia.
Depois de um tempo sem duração, as nuvens voltaram e comecei a longa descida até à bike, à estrada e ao estranho mundo dos homens civilizados, onde a simplicidade está desaparecendo e as relações tornam-se cada vez mais complicadas.
Para mim, já passou da hora de todos nós virarmos mais para a natureza e agradecer pelas coisas linda e simples que ela tão generosamente nos oferece.