No início do ano, uma vontade intensa de mudar o rumo da minha vida competitiva pairava em minha mente. Estava vendo o quanto poderia ser feliz organizando minhas próprias expedições com o Gui para os lugares que mais gostaríamos de visitar e curtindo do início ao fim. O comprometimento das competições, somado a frustrações, seguidas por muito tempo e dinheiro investidos e resultados nem sempre justos ou esperados haviam chegado ao seu ápice e para mim, aquilo tudo não estava fazendo mais sentido. A corrida de aventura, esporte que pratico a mais de 10 anos com muito amor, estava cedendo lugar apenas para a aventura, sem a parte competitiva.
© Chris Radcliffe
Passamos 40 dias fantásticos escalando na Patagônia e ao retornar ao Brasil os planos competitivos eram bem humildes. A vida seguia pacata quando nosso grupo de whatsapp The North Face Adventure Team (da equipe que havíamos feito parte numa competição na China o ano passado) despertou com um convite: "vamos correr a Cowboy Tough Expedition Race em julho?” (a maior prova de corrida de aventura dos Estados Unidos e parte do circuito mundial do esporte).
A equipe original de Hong Kong engloba atletas de corrida de montanha e de aventura disputando as maiores provas de ultramaratona do mundo, assim como as provas de estágio chinesas, famosas pelo alto nível competitivo e grande premiação em dinheiro. O Ryan, capitão do time, é atleta de longa data mas não corria uma corrida de aventura longa há mais de 10 anos e estava com vontade de retornar a esse mundo. Para o Jay, nosso quarto integrante, essa seria uma experiência totalmente nova, sua primeira corrida de expedição.
Não precisei pensar muito para aceitar o convite, postergar a minha aposentadoria competitiva e voltar logo aos treinos…
© Chris Radcliffe
Na chegada aos Estados Unidos, passamos alguns dias em Vail, no Colorado, treinando e nos organizando antes de seguir para Casper (no estado de Wyoming) local de largada da prova. Gui e eu tivemos um trabalhão para colocar os outros dois dentro da logística e estratégia da prova. Na verdade, faltou bastante organização pré prova, acredito que pela falta de experiência deles que não achavam tão necessário gastar tanto tempo nisso…
A logística necessária numa prova longa de corrida de aventura é quase infinita e todos precisam estar motivados para entender e se possível decorar a sequência das modalidades e o que irá em cada caixa a ser transportada pela organização, quanto mais tempo e detalhes cobrirmos antes da largada, mais tranquila será a nossa prova. Qualquer corredor de aventura experiente sabe a importância que isso tem e no nosso caso não tínhamos essa experiência.
Para nós, uma sementinha de frustração se plantava, o que me fez largar sem grande motivação e expectativas com a equipe. Em 2013, durante uma prova de 500km na Nova Zelândia, Gui e eu experienciamos algo marcante com a equipe que competimos. Nossos parceiros estavam fisicamente muito bem preparados, mas a falta de experiência mental específica para esse tipo de competição colocou à prova o nosso convívio social, já que nossas personalidades eram extremamente opostas nas horas difíceis. Passar frio e sono não estavam nos planos dos atletas que competíamos e isso gerou um enorme atraso e um estresse maior ainda quando tentávamos puxar um pouco o ritmo. Naquela ocasião, nossas expectativas eram altas e acabamos muito frustrados. A linha de chegada foi também o corte do nosso cordão umbilical e infelizmente nunca mais conversamos com um dos atletas. Agora vivíamos algo parecido e o stress social era eminente. Gui e eu conversamos bastante para nos preparar e nos esforçar para evitar passar novamente por aquilo e para isso, seria preciso diminuir as expectativas drasticamente.
Pela frente teríamos 650km divididos em 400km de mountain bike, 90km de trekking, 160km de canoagem, um rapel e uma ascensão em cordas e menos de 3 dias e meio (78 horas) para concluir tudo isso. A Cowboy Tough tem um formato diferente das outras corridas de aventura do circuito mundial, ela é baseada em pontos. Aqui, a equipe que pegar mais pontos vence e o tempo é usado apenas como critério de desempate. Nos anos anteriores, alguns trechos tiveram que ser abandonados pelas equipes, pois não seria possível "zerar" (passar por todos os pontos) o percurso em 78 horas, mas esse ano o organizador nos afirmou que isso seria possível e que se quiséssemos ganhar seria necessário "zerar".
© Chris Radcliffe
Tivemos que rever nossas previsões e ajustar a estratégia para sermos competitivos, caso conseguíssemos fazer o percurso completo, passando por todos os pontos, tanto obrigatórios quanto opcionais, certamente seria um recorde para uma prova de expedição. Mais de 200km percorridos por dia de prova, difícil de acreditar…
Largamos num pelotão de mountain bike por 55km as 6 da manhã e seguimos remando com canoas canadenses no rio North Platte de águas bem rápidas. Seriam 120km de remada com 3 paradas para trekking curtos ao longo do rio e no final um trecho numa represa com bastante vento contra. Concluímos bem esse trecho e terminamos por volta das 10 da noite, fizemos uma portagem com as canoas para acessar a transição e montamos em nossas bikes para o trecho mais incrível de mountain bike que já pedalei numa expedição.
Incrível, porém duro! 50km por um parque só para mountain bikes com trilhas que variavam de dificuldade conforme sua cor no mapa (verde, azul, vermelha e preta). Haviam 10 pontos a serem buscados em qualquer ordem e demoramos 6 horas para terminar. A próxima sessão eram 40km de canoagem e só poderíamos entrar no rio às 5:30 da manhã por questões de segurança. Chegamos na transição às 4:45, nos preparamos, porém o Ryan e o Jay estavam muito cansados e com sono, nos atrasando para iniciar a canoagem somente às 7 da manhã.
Fiquei extremamente frustrada a partir daí. Perdemos a competitividade no primeiro sinal de desconforto. Se fosse na prova de 2013, pegaria meu saco de dormir entraria dentro e pediria para eles me chamarem quando estivessem prontos. Todos os meus pensamentos do início do ano voltaram a tona e mais uma vez estava ali perdendo meu tempo e poderia estar fazendo minha própria expedição feliz da vida bem longe de Wyoming… Porém resolvi me concentrar em como aproveitar aquele momento tirando algum aprendizado daquela situação negativa.
Respirei fundo e concluímos essa canoagem bem tranquilos partindo para mais uma bike de 60km. Conversamos muito nessa manhã de prova, externei meu desapontamento e chegamos ao consenso de dar tudo a partir dali, de recomeçar…
© Chris Radcliffe
No final dessa bike foram 41km de trekking onde seguimos o combinado e fizemos forte. Paramos para dormir no meio desse trecho, renovar nossas energias para o início do terceiro dia e partimos de bike na manhã do terceiro dia. Fazia muito frio e eu não me sentia muito bem, chegamos para mais um trecho de trekking, dessa vez com a sessão de cordas. A todo momento pensava no recorde que estávamos completando dia após dia em Wyoming, naquele ritmo não seriam necessárias as 78 horas, poderíamos até concluir com menos tempo a prova! A harmonia da equipe melhorou e confesso que precisei de muita energia para ceder do meu lado, acredito que cada um teve que se esforçar um pouco para entrarmos num consenso e isso foi um progresso de nós como equipe.
Terminamos o trekking e seguimos de bike novamente. Essa região é bem famosa pelos fortes ventos e até ali ainda não havíamos experimentado toda a sua força… até ali! Os próximos 70km de bike foram muito duros, movíamos a 9km por hora no plano, eram campos abertos onde ao longe víamos pequenos tornados se formando por todos os lados. Um desses tornados veio direto em nossa direção e quando percebemos que passaríamos dentro dele paramos a bike e nos seguramos firme. Aquele cone de pequenas pedrinhas e muita poeira passou com tudo, parecendo cena de filme. Abaixei a cabeça, fechei os olhos e esperei passar. Olhamos uns para os outros e nos certificamos que estávamos todos bem antes de voltar a pedalar.
Mais um trekking de 10km, que estava bem monótono até eu me perder da equipe! Estávamos caminhando sobre uma vegetação na altura da cintura quando pedi para a equipe para ir "ao banheiro". Abaixei no mato e eles seguiram, parando logo a frente, deitando e dormindo. Quando levantei pronta para partir, não vi onde eles haviam parado e imaginei que haviam seguido. Comecei a correr à procura deles, apitando (em vão por causa do vento) e nos tomou um tempão até nos encontrarmos novamente. Estávamos próximos o tempo todo, porém não conseguia vê-los! Agora havia ficado frustrada comigo mesma, com tanto tempo competindo sei a importância que tem a equipe permanecer junta o tempo todo e ali falhei.
De volta às bikes para mais 70km e fomos pegos por uma chuva de raios dessa vez. Escurecia e não tínhamos onde nos abrigar, nos restando seguir em frente. Por 50km o vento nos ajudou e tivemos uma longa descida também, um alívio para o trauma do trecho anterior de bike contra o vento. Os últimos 23km no entanto, nos pegaram de surpresa, mudamos a direção encarando novamente um ventasso e para completar seriam 23km de subida. Já estava tarde e os monstros da falta de sono tomaram conta de nós quatro. Procurávamos um local para deitar um pouco, mas não havia abrigos. Cada quilômetro era uma vitória. Eu olhava pro Gui e seus olhos estavam completamente fechados, não sei como se sustentava em cima da bike daquele jeito! Cantamos, brigamos, gritamos, tomamos cafeína e a subida não acabava, olhava o odômetro que marcava zero a todo momento, ou seja, estávamos muito lentos. A noite era escura, quase sem lua, víamos o contorno da crista da montanha, mas o final demorou a se aproximar. Ao finalmente chegar à transição, nos abraçamos como se ali fosse a linha de chegada, conseguimos superar aquela montanha sem dormir e mais do que isso, estávamos unidos!
O final da prova se aproximava, tínhamos mais um trekking de 17km e a bike final de 25km. Resolvemos dormir um pouco e seguir na primeira luz do dia. Não tínhamos muito tempo para o final das 78 horas, mas o trekking tinha navegação difícil e optamos por fazê-lo com luz. Com as baterias recarregadas mandamos bem nesse trecho e seguimos para a chegada com tempo de sobra. Sem perspectiva de alcançar nenhuma equipe e nem de alguma nos passar fomos batendo um papo bem tranquilo, planejando o futuro e analisando nossa prova.
Temos muito a melhorar e evoluir como uma equipe competitiva de corridas de expedição, principalmente com o pré prova e com o fato de dormir pouco e ainda ter que funcionar como se estivéssemos descansados quando estamos competindo, mas estávamos felizes com nossa performance na primeira prova.
Não existe uma corrida de aventura igual a outra, de todas levamos algo novo que irá nos fortalecer como ser humanos, aprendizados que nos tornarão pessoas mais sabias para lidar com situações do nosso dia dia e da sociedade que vivemos. Uma boa equipe de corrida de aventura precisa ser física e mentalmente forte, mas também socialmente capaz de respeitar os defeitos do próximo e exaltar suas qualidades para se locomover como um só corpo.
Para mim, essa foi uma oportunidade de reconhecer desastres eminentes e me esforçar para tentar buscar a harmonia pelo bem da equipe, deixando a individualidade de lado.