Relato Katia Ronise na Ultra Fiord 2016 – Adventuremag

Adoro fazer provas de longas distâncias e tenho muito cuidado em escolher uma prova que seja em um lugar bonito e, de preferência, que eu ainda não conheça, pois gosto de unir o prazer da corrida ao turismo. Pensando assim, escolhi para este primeiro semestre a ULTRA FIORD, na distância de 100 milhas, localizada na Patagônia chilena.

O site da prova informava que era uma prova difícil e que para se inscrever eram necessários um currículo de provas de longas distâncias e experiência na montanha. Assim, fiz a pré-inscrição e fui aceita para participar.

Inscrição feita, comecei a estudar a prova para entender onde estavam as dificuldades, saber quais os equipamentos necessários e traçar estratégias. Enfim, tudo para completá-la da melhor forma. Confesso que isso é o que mais me encanta nessas provas longas: todo esse preparo e também os treinos duros.

A viagem – A viagem de avião me levou de São Paulo à Punta Arenas, onde de carro segui para Puerto Natales, cidade sede da prova, localizada bem ao sul do Chile. Nestes dois dias que antecederam a competição encontrei muitos amigos brasileiros e fiz outros tantos. Eu também gosto muito desta parte social que as provas me proporcionam!

Bem, na entrega dos kits fiquei sabendo que a prova teria alterações no percurso, nas distâncias e nos PCs de drop bag, enfim muitas mudanças que ainda não tinham sido bem definidas. Isso gerou um estresse na maioria dos corredores porque ninguém estava entendendo o que aconteceria. Assim como muitos outros eu também fiquei chateada, pois tiraram do percurso o pico da montanha. Não mais subiríamos até o glaciar a 1300m de altura e diminuíram de 164km para 144km o percurso das 100 milhas, evitando atravessar um rio mais fundo, onde cruzaríamos com a água na altura do peito.

Foi então que analisei a situação e, como sei que o organizador do evento é conhecido por fazer as provas mais radicais do mundo, achei melhor respeitar toda a mudança. O chamado "vento branco" e as baixas temperaturas que a organização dizia serem os responsáveis pela alteração dos planos deveriam mesmo ser significantes, afinal de contas estávamos "só" a 1500kms da Antártida.

Enfim, refiz toda minha estratégia. No percurso original eu teria três drop bags pelo caminho, mas com essa mudança tive apenas dois, nos quais dividi toda alimentação e duas trocas de roupas e também duas de tênis. O tênis utilizado na última parte do percurso (estradão e asfalto) era próprio para corrida de rua e foi sugerido pela Manu Vilaseca um pouco antes da prova.

A prova – Pegamos uma van às 22hr em Puerto Natales que nos levou para a largada na Estância El Kark. O vento era congelante e tão logo chegamos, fomos posicionados no pórtico e a largada foi dada exatamente às 23.59hr!!!

Os competidores largaram forte e eu, além de não querer correr naquele ritmo, estava com muita roupa o que dificultava minha mobilidade. Tão logo atravessamos o primeiro rio eu me vi sozinha na trilha. No entanto estava me sentindo bem e no ritmo que pretendia para os primeiros 16kms. Assim que passei o primeiro PC eu me perdi e, nos quilômetros seguintes foi assim: saindo da trilha a toda hora e perdendo a marcação. Eu não enxergava direito e o percurso me parecia estar mal sinalizado. Minha lanterna estava fraca e dificultou muito minha progressão.

Fiz esse trecho de 49km em 9.30h. Na verdade eu fiz uma quilometragem maior pelo meu GPS do que a distância que estava estabelecida na prova. Embora estivesse preocupada e atenta para não errar, pude observar como, de uma noite estrelada e linda, o tempo mudou. Primeiro para uma chuva fina e depois, vento e neve. Sentia que esfriava cada vez mais. Tudo ficou bem difícil pois a escuridão se estendeu até depois das 8.30 da manhã.

Ao final da etapa cheguei ao PC do drop bag no Hotel Torres Del Paine, onde tudo estava perfeito, quentinho e com muita comida. Quase sentia o lugar me abraçando e dizendo "fique aqui , fique, fique!!!"

Foi então que procurei ser o mais rápida possível com a troca de roupa e de tênis. Arrumei minha mochila, abasteci as garrafas e logo saí para o segundo trecho.

Tentei ficar com menos roupa, mais leve, mas não aguentei o frio e coloquei novamente o anorak e a calça corta-vento. Senti que o frio aumentava ainda mais. Nessa segunda etapa comecei a subir um bosque onde as folhas das árvores estavam trocando de verde para amarelo e vermelho, simplesmente lindo! Fico encantada com estes cenários, feliz por estar ali e viver aquele momento.

Assim, fui subindo, subindo e logo encontrei os competidores dos 70km, muitos dos quais eram brasileiros e tinham largado de um lugar próximo, que ao passar paravam para dar força e trocar umas poucas palavras para logo seguir, pois estavam em uma prova mais rápida.

Já na parte alta da montanha saí do bosque e a paisagem mudou completamente. O terreno era de pedras e neve. Cheguei ao último PC, abasteci as garrafas e continuei subindo pelas pedras. A temperatura havia baixado ainda mais, o céu estava totalmente encoberto, estávamos abaixo de 10ºC negativos. Minhas mãos estavam geladas mesmo com as luvas impermeáveis, foi então que as troquei pelas luvas de neve que estavam na mochila. Isso demandou uma certa paciência, pois minhas mãos já estavam inchadas pelo frio e não entravam nas luvas.

Continuei seguindo pela montanha e tomando cuidado, pois o terreno era bem técnico e eu não queria me machucar nem parar ali. Nesse local, em Chacabuco, um competidor mexicano perdeu a vida durante a prova. Teve hipotermia e, embora alguns competidores parassem para falar com ele, acabou ficando para trás, sem ajuda e sem médicos. Como muitos relataram depois, ele estaria esgotado e com pouca roupa e assim, por descuido, foi deixado para trás. Neste trecho, não havia como desistir e nem um abrigo para parar.

Depois de alguns quilômetros no alto da montanha iniciei a descida, atravessei uma pequena cascata e segui por um terreno bastante escorregadio onde apesar do cuidado, levei alguns tombos.

Quando entrei no bosque o cenário mudou novamente, agora estava novamente cercada pela floresta. Após passar por dois PCs me dei conta que logo iria escurecer. Lembrei da minha lanterna fraca e decidi que precisava seguir com alguém para não me perder novamente. Quando passou um brasileiro, o Ito, que tinha uma bandeira dependurada na mochila e estava nos 70km andando rápido, nem pensei duas vezes e segui firme atrás dele.

Depois de um tempo encontrei a Juliana, uma amiga querida que estava nos 50km e só disse para ela: vamos Ju! Claro que passamos a conversar, o que tornou o trecho mais agradável apesar dos inúmeros rios de gelo, de toda lama que em que me atolava, por horas me divertindo e em outras sofrendo, já que não sentia mais meus pés de tanto frio.

Muitos corredores não estava bem na montanha, sofrendo por causa do frio e muitos estavam simplesmente fadigados ou com dores, principalmente nos joelhos. Não havia postos que os competidores pudessem desistir da prova e nesta parte do percurso de 50km não tinha como escapar! Assim os competidores deveriam completar o percurso, chegar até a estância de Perales, meta dos 50km e 70km, que era o fim da prova deles.

Enfim chegamos à Estância Perales, onde a Juliana e o Ito terminaram suas provas, enquanto eu fui para uma casinha, onde estava minha segunda drop bag. Eu continuaria ainda por mais 44km! Assim, troquei toda a roupa e o tênis, me alimentei e pensei que poderia dormir um pouquinho, mas ali era impossível, pois o lugar estava sujo e bagunçado, não tinha espaço para sentar nem no chão.

Demorei uma hora ali e saí para o último trecho. No inicio, mal notei que beirava o mar e mal entendia para onde ir, pois os staffs só falaram: "siga a cerca, pegue a estrada e logo você encontrará outros corredores que estão mais a frente!" Fiz o que disseram e logo estava no estradão. Não conseguia correr e estava zonza, talvez de sono, mas o que me deixava aliviada era que haveria um outro PC em 12kms. Nesta esperança, mesmo com o frio deixando meus pés mais gelados, acabei apertando o passo para chegar mais rápido ao PC, mas este simplesmente não estava lá!

Senti que cochilava andando, não conseguia evitar, até sonhava! Começou a nevar mais forte, comecei a mexer na mochila, procurando nem sei o quê e quando me dei conta, tinha perdido os trekking poles. Fiquei olhando para minhas mãos sem entender o que tinha feito. Voltei para trás e encontrei um deles, caminhei mais um pouco e nada, então achei melhor continuar a corrida, larguei para trás.

A nevasca aumentava, me forçando a despertar da minha sonolência. Comecei a alternar trote e trekking e consegui começar a correr. Vi a cidade de Puerto Natales ao longe e me entusiasmei, estava chegando ao fim da minha jornada!

Saí da terra e peguei a estrada de asfalto e depois de alguns quilômetros, sabia que a chegada estava próxima. Amarrei minha bandeira no único trekking pole que tinha e cruzei o pórtico. Havia corrido uma prova incríve, onde tive a certeza de que não podemos subestimar a força da natureza!

P.S. Gostaria de expressar meus sinceros sentimentos por Arturo Martinez, competidor mexicano, que perdeu sua vida naquelas montanhas durante a prova das 100milhas.