Com a Cordilheira Paine em nossas costas e o Monte Donoso e várias geleiras à nossa direita começava os 70K da Ultra Fiord 2017. Quando as coisas são intensas, normalmente se comenta que são gerados sentimentos de amor/ódio.
Para mim a experiência de correr pela Patagonia Austral traz sentimentos de amor profundo. O Trail Running como disciplina ensina muito, mas sempre fui critico à presença de postos de abastecimentos. Você testa seus limites físicos e mentais, mas sempre há uma camada de tranquilidade quando está muito próximo da civilização. Ou até mais, se a corrida tem muito apoio logístico, pode mascarar as verdadeiras capacidades dos participantes.
Ultra Fiord é uma espécie de renegado do sistema, sendo um evento romântico mesclado com a natureza selvagem enfatizando fervorosamente que em todas as distâncias é preciso ser auto-suficiente. Adicionando o clima imprevisível e o dificil acesso ao local , a Ultra Fiord se destaca como o rei dos reis do trail running mundial.
Na minha opinião, se essa é a palavra de ordem, o melhor é estar preparado para uma distância maior que a escolhida, garantindo não apenas cruzar a linha de chegada são e salvo, mas permitir também desfrutar de uma experiência única e exclusiva no mundo… Sim, em todo o mundo.
A umidade no vale estava densa e gelada, quase no limite do congelamento. No horizonte se viam os picos nevados e os cristais brancos depositados sobre as rochas que se elevam até o céu. Abaixo, a planície amarela estava coberta pelo gelo acumulado antes do amanhecer. Assim era o cenário da largada: significativa, profunda e silenciosa em sublimidade.
Em uma ausência marcante não havia vento, somente o frio e nossos passos pela planície. O astro-rei estava escondido atrás das cadeias de maciços. O barro era tolerável, pior quando estava misturado com água e se sentia que estava no limite de congelamento. Galhos úmidos e raízes arredondadas nos vales nos mantinham com a visão atenta a cada passo, tomando o cuidado para não cair de cara no chão.
Quando subimos os morros atrás das montanhas, o sol fraco mal esquentava nossos rostos, mas ainda assim era o melhor presente que a natureza poderia nos oferecer. Na Patagonia, qualquer ajuda é muito. Tudo é mais vivo, as cores são mais intensas, os odores são mais profundos… Cada passo é um mantra de agradecimento, porque não devemos nos esquecer que estamos onde estamos porque escolhemos fazer isso. E essa é a maior benção.
Uma subida desafiadora nos leva ao monarca do percurso: o glaciar Chacabuco. Para passar por ele deviamos primeiro descer para o vale onde havia gelo nos tempos em que as geleiras se espalhavam pelas planícies. Enquanto nos movíamos em direção ao novo território do gelo, tinhamos a visão das montanhas tão harmoniosas que apenas vendo pessoalmente para sentir como o coração palpita em sua presença… Agora as pedras são planas e afiadas com neve cobrindo suas superfícies… Sim, subimos uma geleira.
Sim, é uma corrida trail onde se cruza uma geleira e não é qualquer uma com pouca inclinação e de pouco respeito. É um acúmulo de centenas de milhões de litros de água milenarmente congelada. E por ali estávamos passando, um lugar onde poucos humanos passaram; onde as montanhas não haviam sido pisadas pelos homens; onde os vales foram formados por cataclismas, movimentos tectônicos e água com divina cristalização; onde a natureza é literalmente virgem, pouco vista e é até mesmo temida. Estávamos sobre os ombros dos gigantes da Patagonia enquanto tentávamos chegar na cota dos 1.200 metros acima do nível do mar.
Uma travessia pela neve até uma direita e uma descida íngreme onde podíamos descer correndo. Após deixar a geleira, subimos novamente por rochas moldadas pelo tempo. Prova que o gelo cobria não apenas as planícies, mas também os picos mais altos nos tempos que a Era do Gelo estava na sua glória máxima.
Barro: barro negro, barro marrom, barro aguado, barro pastoso, barro semi-seco, barro quase seco, barro ruinoso que faz a Patagônia ser o que é: uma terra de valentes, fortes e virtuosos. Na Patagonia nada é fácil e quem paga o preço conquista o firmamento. Patagônia é a terra de vida fervorosa, mas também da morte crua, é a terra do esquecimento estéril, mas também da glória eterna e a Ultra Fiord faz vibrar cada molécula do meio onde está incorporado.
O tempo estimado para cruzar a linha de chegada para muitos nunca foi o planejado, porque é disso que se trata tudo. Ultra Fiord é imprevisível pelo seu ambiente, suas pessoas são forjadas sob a idéia de resolver problemas na hora. O clima é selvagem e hostil que quando dá trégua sente cada photon do sol tocando a superficies de seus poros. O prêmio é apenas apreciado por quem põe os pés na turba, onde vemos do que somos feitos.
De que somos feitos? Até onde o desejo do homem pode nos levar antes que se quebre? Quais são os limites do espírito imerso nas paisagens indomáveis? Talvez essas são algumas das perguntas que nos fazemos quando estamos sofrendo nos fiordes da Patagônia.
A Ultra Fiord é romanticamente hostil: foi feita para as pessoas que buscam uma experiência além da corrida tradicional. É para corredores que buscam um desafio colossal, mas creio que sua magia está mais evidentes nos sentimentos de cheiro, sensação e toque. Vejo a Ultra Fiord como um conjunto perfeito onde as formas mais selvagens da natureza patagonica são fundidas, cobrindo o homem com as cenas mais sublimes, mas ao custo de um esforço fisico-mental-espiritual muito maior em relação a quaisquer outras corridas de montanha.
Ultra Fiord se perfila como uma das melhores corridas criadas na história. É inquestionável que com os ajustes precisos que estão sendo feitas atualmente a estão transformando em uma obra de arte do trail running em que todo corredor se verá convocado pelo seu espirito selvagem a pisar no terreno inóspito-bravo da Patagonia Austral.
Se correr representa para você muitas coisas, mas sobretudo o encontro com experiências catárticas, deve correr a Ultra Fiord. Simples assim.