autor: Patricia Honda
Como atleta amadora movida a desafios, procuro incluir no meu calendário anual de provas uma corrida de longa distância que me obrigue a sair da minha zona de conforto. Neste ano, a eleita foi a Ultra Fiord 100 km, por apresentar condições climáticas desafiadoras em um terreno bastante técnico, tendo como cenário o fotogênico e gélido extremo sul da Patagônia Chilena. Bosques, rios, charcos, turbas, lagos, montanhas, fiordes e glaciares compõem esse território selvagem e inóspito eleito por atletas de mais de 30 países para satisfazer seus espíritos aventureiros e testar seus limites físicos e mentais.
Seis e meia da manhã, 06 de abril de 2018, Província de Última Esperanza, Região de Magalhães e Antártica Chilena. Ainda antes de amanhecer, parti da Plaza de Armas de Puerto Natales em um dos diversos ônibus da organização em direção ao Hotel Río Serrano, em Torres del Paine – ponto de largada dos 70 km, 100 km e 100 Mi. Ao encontrar muitos rostos conhecidos – parecia que estava em uma prova no Brasil -, me senti em casa. Antes da largada, consegui relaxar um pouco no sofá do hotel, já que a ansiedade da noite anterior me privara de uma boa noite de sono. Ansiedade esta provocada pela comunicação de última hora de mudanças consideráveis no percurso, além do adiamento da largada das 100 Mi, em virtude das más condições meteorológicas. No percurso dos 100 km, houve o corte do tão esperado glaciar – infelizmente, a neve tornara esse trecho perigoso – e a distância passaria a ser de 110 km. Naquele momento, eu mal podia imaginar o que enfrentaria nas 18 horas e 52 minutos de prova que se seguiriam… Como toda boa aventura, esta também contaria com alguns percalços.
E eis que, às 10h16 de uma fria manhã de outono, foi dada a largada dos 100 km e das 100 Mi. Comecei num ritmo confortável, na companhia do meu amigo Luis – com quem correria até o km 57. Alguns minutos prova adentro, cheguei a um single track em um gracioso bosque, onde pude apreciar a mudança da coloração das folhas das árvores que apresentavam uma paleta de tons outonais espetacular. Logo, o calor provocado pela corrida começou a me incomodar, mas decidi prosseguir sem tirar a jaqueta impermeável. As passadas corriam soltas e após alguns quilômetros, ao finalizar uma suave subida, me deparei com a minha seção favorita da prova: o Chacabuco Norte. Este se apresentava diante de mim em um panorama deslumbrante, com toda a sua glória, parecendo um portal de entrada para outro mundo – o que não deixava de ser, de certa maneira. Apesar do frio intenso, me permiti breves momentos de contemplação daquele belo contraste entre as montanhas de granito a perder de vista e a neve que as encobria, assim como de seus glaciares. O terreno, composto de pedras soltas, gelo e neve, me deixou um pouco apreensiva em relação ao meu problemático tornozelo. Uma torção ali me obrigaria a parar, o que poderia me levar rapidamente a um estado de hipotermia. Trata-se do local onde infelizmente, na Ultra Fiord de 2016, falecera o corredor mexicano Arturo Martinez. Portanto, todo cuidado era pouco.
Após o PC (Ponto de Controle) Chacabuco 2, alcancei o famigerado trecho de charco e turba – uma vegetação encharcada, típica da região. Era imperativo amarrar bem firme os tênis para não perdê-los ao afundar as pernas no barro, muitas vezes, até as coxas. Foi um trecho que demandou boas doses de paciência e que rendeu boas conversas, já que demorou a passar. Depois de cruzar alguns rios, que limparam o barro acumulado nos tênis e nas pernas, finalmente encontrei mais bosques corríveis, cortados às vezes por imensas árvores caídas pelo caminho.
Pouco além do PAS (Posto de Ajuda e Controle) El Ascenso, me deparei com uma longa subida e, quando pensava que havia atingido o topo e logo começaria a descer, avistei o cume do Cerro Prat, a montanha mais emblemática da prova, onde intrépidos corredores já se encontravam na reta final da subida. Minha preocupação nesse momento era chegar ao cume antes de escurecer, pois a temperatura começava a cair e o vento, piorar. Logo começaria a anoitecer, portanto, apertei o passo. A subida era penosa, tendo em vista o terreno extremamente técnico, onde, a cada investida para cima, retrocedia um pouco, em virtude de pedras soltas de todos os tamanhos – o que acabou por exigir toda a minha capacidade de concentração para encontrar o melhor caminho possível. E justamente ali, uma nevasca me pegou de surpresa – a natureza começava a mostrar sua força. Ao olhar para baixo e ver algumas headlamps de outros corredores serpenteando a montanha, fiquei mais tranquila por não estar sozinha. (Mais tarde, só depois de terminar a prova, soube que por conta dessa nevasca os organizadores entenderam por bem fechar o acesso à montanha, sob protesto dos corredores que ali chegavam. Em relação aos que lograram passar anteriormente, já não havia o que fazer a não ser continuar a prova, o que foi o meu caso).
Ao atingir o cume do Prat, já coberto de neve, tirei a jaqueta impermeável para vestir o Thermoball, sentindo o vento cortante me castigar. Era um mal necessário. As mãos inchadas e enrijecidas pelo frio encontraram certa dificuldade para entrar nas luvas. Até mesmo a descida do Prat foi bem complicada, pois a neve escondia as pedras soltas e, com isso, os tombos se tornaram inevitáveis. Foram momentos tensos e difíceis, em que consegui manter a calma e suportar estoicamente as adversidades, para sair em segurança o mais rápido possível dessa zona de perigo.
Momentos depois, que pareceram uma eternidade, me vi em um bosque tranquilo, por onde segui até finalmente chegar ao PC Milodón, no km 57, um pouco antes das onze horas da noite. Um paraíso quentinho, onde me permiti descansar um pouco, amontoada com outros corredores dentro de uma barraca, tomando uma rala sopa quente enquanto tirava as pedras que me incomodavam dentro dos tênis. Foi difícil sair de lá para voltar a correr madrugada adentro, mas ainda era o meio da prova e precisava partir. Por breves momentos, travei uma batalha contra o frio e o sono, chegando ao ponto de fechar os olhos e caminhar sonambulamente. Até que encontrei o simpático argentino Timo, que estava em sua quarta prova da Ultra Fiord e que se revelou um corredor alegre e falante. Decidimos seguir juntos para espantar o sono que nos afligia conversando sobre provas, treinos e afins.
Depois de deixar o PAS Valle Alto, mais subida e um vento frio de gelar os ossos. A alguns quilômetros do próximo PC comecei a sentir um pouco de fome, mas naquele momento não tirava as luvas por nada, nem para pegar a comida na minha mochila. Timo se mostrou surpreso, pois não sentia tanto frio quanto eu. Assim, corri alguns quilômetros – não sei precisar quantos, pois, como de costume, corri sem relógio-, sem me alimentar. Ao avistar à distância as luzes da barraca de apoio do PC Dos Lagunas, uma animação crescente tomou conta de mim, pois esperava que lá pudesse me aquecer tomando algo quente.
Para minha surpresa, ao chegar lá, no km 82, às 05h08 da manhã, fui informada de que a prova se encerrava ali, pois os últimos 30 km foram cortados tendo em vista a segurança dos atletas. Confesso que recebi a notícia com um misto de decepção e alegria. Decepção, por cortarem mais uma vez uma seção do percurso e alegria pela sensação de realização ao terminar a prova. E eu ainda nem sabia que tinha sido a campeã dos 100 km.
Só mais tarde, já em Puerto Natales, quando fui buscar minha medalha e os drop bags, fiquei sabendo que tinha conquistado o 1º lugar geral feminino e o 1º lugar na categoria Puma (30-39 anos) feminina nos 100 Km – 82 km. Por razões que desconheço, não houve cerimônia de premiação dos atletas dos 100 km e das 100 Mi. Nada que me entristecesse, levando em consideração a lembrança de um episódio ocorrido naquela manhã: ao chegar ao hotel, suja, cansada e ainda com as roupas molhadas da prova, encontrei uma argentina que me relatou a sua frustração ao ser impedida de subir o Cerro Prat em virtude da piora das condições climáticas, frustração esta partilhada por outras atletas que foram cortadas. Por isso, fico extremamente feliz por ter sido uma das poucas mulheres a ter tido a oportunidade de completar com sucesso esse desafio – no caso dos 100 km, apenas duas atletas não foram cortadas, eu e a Sabrina Schirmer, também brasileira.
Saio dessa experiência transformadora cheia de aprendizados e fortalecida para novos desafios, com a certeza de que é nas adversidades que evoluímos. Acredito que todos os atletas, profissionais ou amadores, que terminaram a Ultra Fiord 2018 – segundo alguns, a edição mais extrema até o momento -, são vencedores, independentemente da sua colocação final.