Um ano se passara, e todo esforço e treinos exaustivos pareciam morrer ali, naquela praia, Urca. Pequena para tamanha movimentação de atletas e carros de apoio, pequena para tamanha euforia, pequena demais para elite carioca que não estava gostando nada nada daquele reboliço.
E para dar mais adrenalina, sob protestos, a largada foi mudada para dentro do quartel. Às 11hs com duas horas de atraso, embaixo de dois enormes balões do ecomotion, soberanos na praia particular, foi dada a largada! O barulho dos helicópteros se misturava aos gritos, abafados pelas batidas do meu coração. Agora não tinha mais volta! Saímos remando, eu remava com o Felipe Fuentes, o Rafa remava com o Márcio Razera, essa era a nossa equipe, sem contar com o Alceu o quinto elemento que ia na minha cintura para me dar apoio nas horas em que a lombar fosse pegar.
O primeiro trecho foi movido pela adrenalina e pela beleza da iluminação da noite do Rio de Janeiro. Era possível ver o Cristo se distanciando, ali estávamos seguros, sob sua benção. Chegamos na ponte Rio-Niterói e seguimos em frente. O mar estava mais revolto e ainda tinha muito o que remar. O trecho inicial era de 50 Km. Passavam alguns mergulhões sobre nossa cabeça à caça de comida e numa brincadeira o Fuentes e eu começamos a chamá-los de corujinha, dali em diante tudo seria corujinha. A gente inventou até uma brincadeira que era “corujinha corujinha corujinha...PEDRA” um pedra-tesoura-papel estilizado, assim por dizer, e isso me impediu de sentir sono... Já no barco ao lado; o Marcio apagava como se tivesse queimado o fusível, ele despencava, literalmente, e nessa caída ao sono o barco ficava pesado e o Rafa, que estava a frente, não conseguia remar e começava a reclamar com o Márcio. Eu e o Funga caindo na risada, era fora de controle. E assim fomos madrugada afora.
Já estava amanhecendo e a maré baixava, tanto, que ficamos sem água, víamos uma montoeira de equipes rodando de um lado para o outro, algumas ainda achavam água, outras empurravam os caiaques sobre o lodo. A zona era tanta que até ficamos na dúvida que braço deveríamos pegar (o PC1 deveria estar 500m para dentro de um dos braços). Em vão, depois de ignorarmos um pouco a dúvida das outras equipes e nós mesmos batermos cabeça, empurrarmos os nossos caiaques num esforço descomunal (tínhamos que empurrar de joelhos para não afundar na lama. Ali pagamos todas as nossas promessas) e decidimos seguir no braço que achávamos o certo...e era. Quem estava no lugar errado era o PC! Fomos avisados disso quando já estávamos rumo ao PC seguinte. O trecho do rio Guapi Mirim era a “reta” final mais longa, parecia não chegar nunca! E finalmente depois de um trecho de 50Km de remo, algo que parecia impossível chegava ao fim, ali no PC2.
Transição sem apoio, pegamos as nossas bikes. O primeiro trecho de bike foi relativamente tranqüilo. O calor era intenso, mas conseguimos um ritmo e fomos 23k até o PC3. Depois disso, meu Deus! Uma trilha aonde levamos a nossas bikes para passear, nada além de um push bike nervoso, e caímos na besteira de perguntar aos locais se faltava muito para chegar. A resposta era sempre menos do que realmente faltava, ou seja, o final do “pedal” foi penoso. E com mais 22k chegamos em Teresópolis, finalmente PC4. Na transição tomei um banho “a seco”, à base de baby wipes e dei uma cochilada porque o plano era esperar “Goiabadas” e “On the rocks” para fazer o trecho do parque juntos, já que estávamos em terreno carioca.
Entramos no Parque Nacional da Serra dos Órgãos às 21hs e a chuva castigando. A estratégia era andar até o abrigo 4, parar dormir e esperar clarear para seguir em frente,mas estava muito difícil acompanhar. Metade do grupo estava sonada. Abandonamos a “On the rocks” e nós e os “Goiabas” paramos no primeiro abrigo: uma gruta. Bivacamos e dormimos por uma hora, duro seguir mas vamos embora! O trecho até o abrigo 4 para mim e para a Dri foi uma tortura. A gente foi dormindo e eu alucinava que estava vendo o abrigo 4 a cada curva. “Agora chegou!” que nada, miragem pura!
Chegamos no abrigo 4 ainda no escuro e aproveitamos para dormir mais uma hora e aí sim saímos novamente com nossos amigos cariocas. As três equipes ficaram juntas por mais alguns quilômetros, descemos rochas por cordas, trechos bem técnicos, enquanto a neblina brincava com a gente, brincava de esconde esconde, hora nada se via, hora a vista era única, rochas enormes, paredões de pedra belíssimos. Demoramos para encontrar a trilha. Nesse momento meu ânimo foi praticamente a zero. Psicologicamente foi um dos trechos mais duros, naquele célebre “o que eu estou fazendo aqui”. O bom é que corredor de aventura já passou por isso e sabe que vai melhorar, desde que nada negativo seja verbalizado, engole o choro e segue.
Estávamos só as duas equipes tentando achar a trilha para a saída do parque quando encontramos a “Rio off road”. Oba mais cariocas na parada! Animamos de novo, nova equipe, novos amigos, assunto novo, seguimos distraídos rumo à saída do parque. Nos separamos novamente, os Goiabas estavam num ritmo melhor do que o nosso, 26k depois saímos do parque e só mais 7k depois estaríamos na transição PC5, apoio com direito a comida quente.
Pega a bike! Fomos juntos com o “Goiabas” escoltados pelo Chris, nosso apoio, um trecho bom de asfalto, pedalamos 42k até o PPO que era um posto e lá decidimos que iríamos dormir 1h porque o sono estava pegando forte. Os “Goiabas” que iam dormir menos resolveram se juntar, afinal não estávamos rendendo mais nada. Saímos no horário combinado e seguimos. Nossos amigos ficaram para trás dessa vez. Pegamos o PC virtual e seguimos rumo ao seguinte; PC7, na Cachoeira do Frade. Lá passamos muito bem, deveríamos pagar 2 horas do cartão de parada obrigatória. Os verticais haviam sido suspensos por causa do tempo. Nossos apoios montaram barracas, trouxeram quentinhas. O horário era perfeito, não tinha amanhecido ainda e a gente tinha que pagar 2 horas de sono...que maravilha. Saímos das barracas renovados!!
A previsão era de umas 8 horas para o PC seguinte, fomos ritmados! A trilha era de tirar o fôlego, gramados enormes e pedras lindas (segundo os meninos, cenário perfeito para um filme pornô... é duro ser mulher com um bando de homens...cada uma que a gente tem que ouvir!). O tempo que tinha impedido as técnicas verticais nos dava uma brecha e nos deixava ver toda a beleza da trilha. Metade do caminho eu fui bolando o Hino do Pró: “Abra sua caixa, gaste sua grana, caia na corrida, entre nessa festa! Me leve com você nesse pró mais loulouloouco, eu quero ver seu corpo indo e vindo doido. A gente às vezes SENTE, SOFRE, anda sem querer andar, nessa corrida vale tudo, vale Uirapuruuuu, vale Selvaaaa. Ande bem, ande mal, ande sem parar, reme bem, reme até, sem saber remar.”
Depois de inventado o hino a gente fez a “transição virtual”. Visualizamos tudo o que a gente tinha que pegar para o próximo trecho, decidimos o que falaríamos para os apoios quando chegássemos, o que cada um faria e estipulamos que faríamos a transição em apenas 15 minutos. Dito e não feito. A 100mts do PC10 (5.30hs depois de ter saído do PC anterior) eu berrava “Uirapuruuuuuuu” “Uirapuruuuuuu” e nada. Quando chegamos no PC vejo a Lílian correndo desesperada “Sentem lá vou fazer comida para vocês. O apoio de vocês não chegou!”. Na hora foi um banho da água fria e amparados pelos nossos apoios amigos “Guaranis” e “Goiabas” começamos a fazer a transição. Eu fui até a equipe médica para uma funilaria do meu pé que estava cheio de bolhas. A prova estava muito molhada e enquanto era tratada chegaram nossos apoios queridos com comida, finalizamos a transição e saímos 50 minutos depois.
E a chuva não parava. Pegamos uma trilha passamos pelo PC virtual e na frente dele encontramos com os “Guaranis”. O Togumi com o pé muito detonado de bolhas. Fizemos umas trilhas e já estava anoitecendo de novo. A noite foi uma batalha, cruzamos com a “On The rocks” de novo. Fomos um bom tempo com os “Guaranis”, pegamos informações de uma trilha com um morador local e seguimos, mais uma vez sofrendo com o sono.
Nessa noite a minha alucinação era confundir as pessoas. O Fuentes virava o Gustavo (apoio dos goiabadas), o Marcio virava o Fidel, sem contar todos os arbustos que viravam estátuas de bronze. Se não fosse trágico seria engraçado. Depois de descer rumo às luzes que supúnhamos ser o lugar que procurávamos, nos separamos dos “Guaranis”. Eles seguiram, eu cambaleava de sono, até que tivemos a brilhante idéia de parar. Os meninos me encostaram em um portão e lá eu fiquei dormindo de pé. O sono era tanto que para andar, se eles não me segurassem, eu caía.
Paramos em uma construção e dormimos até o amanhecer. Quando clareou descobrimos que estávamos no lugar certo e no PC12 tínhamos que pagar 2.40hs porque o cavalo havia sido cancelado. Vou dizer que não reclamamos, dormir mais um pouquinho e a oportunidade de tirar aquele tênis molhado para ver se meu pé secava foi uma delícia!
Pegamos o caminhão que nos levou ao PC seguinte. Eu e a Dri fomos na frente, os meninos atrás. Quando chegamos saímos rápido para o PC seguinte, uma trilha no meio do mato asfaltada. Fomos num ritmo bem forte e logo chegamos na transição. Essa conseguimos fazer o que idealizamos na passada e com a ajuda do Chris e da Fabi, em 20 minutos saímos do apoio com nossas bikes.
Mais um PC havia sido cancelado por causa da chuva. O cara do PC explicou para a gente o caminho que tínhamos que seguir e fomos. O Marcio ficou com o mapa, no caminho perguntamos como fazíamos para chegar na cidade aonde era nossa próxima parada e os moradores deram a dica. Um motoqueiro passou e me mandou pegar a direita. Essa direita que pegamos consistia em 1h de subida, pedalando, empurrando bikes e subindo, com um pequeno detalhe; nada no mapa batia, caminhos azimutes nada! Quando chegamos no topo dessa subida o Rafa toma a descisão de voltar.
Voltamos e pegamos a esquerda, mais a frente e os meninos perguntaram de novo qual era o caminho e fomos informados que era naquela subida mesmo, mais uma vez voltamos à subida, dessa vez subimos em um pouco menos que 1h. E com um perdido de quase 3h chegamos no PC seguinte. O Rafa e o Marcio ficaram desanimadíssimos. Havíamos sido ultrapassados e perdido muito tempo, o que talvez comprometesse a passagem pelo último corte.
Paramos num boteco para comer rapidinho porque estávamos ficando sem comida. O Fuentes pegou o mapa e seguimos. Enquanto ainda tinha luz pedalamos num ritmo super acelerado, depois escureceu e a chuva veio. Diminuímos o ritmo e quase perdemos a esperança. Paramos em uma garagem para esperar um pouco a chuva passar. Todos congelados, foi o trecho da prova em que o frio estava considerável.
O Marcio estava passando muito frio e decidiu tirar o colete e colocar o cobertor de emergência. Pediu ajuda para o Fuentes, que com toda boa vontade do mundo foi tentar enrolar o alumínio, que se rasgava, e como num passe de mágica, ou numa obra de arte, o Marcio havia se tornado uma Flor de alumínio. Nós três não agüentamos e caímos na risada. Condenados pelo homem-flor, as gargalhadas foram interrompidas. Eu olhava para o outro lado e me esforçava ao máximo para não continuar rindo... Mas depois que o frio passou, a flor de alumínio ainda foi motivo de muitas risadas durante a prova.
O Fuentes foi na casa da frente e pediu para senhora um café e ela ficou meio sem entender quem eram aqueles ET´s mas alguns minutos depois lá fui eu buscar o café para mostrar que tinha uma menina no bando. Saí com a bandeja na mão emocionada, querendo chorar. São esses momentos únicos que tornam corrida de aventura um esporte sem igual! Tomamos o café, nos recompusemos e seguimos debaixo de água.
Quando chegamos no PC, para a nossa surpresa o Robinson (capitão da equipe que infelizmente não pôde correr conosco) estava lá, e isso foi uma injeção de animo. O PC seguinte, que estava tão distante, parecia estar logo ali e a esperança que tinha ido embora com a chuva reaparecia nas palavras de incentivo que recebemos na transição.
Saímos pilhados depois de um apoio com direito a brigadeiro! Primeiro uma estrada e depois uma trilha super técnica, um mapa cheio de entradas e bifurcações. O Rafa mandou muito bem na navegação e eu ia controlando o caminho percorrido e tempo no relógio. De tão adrenada que eu fiquei nem senti sono e gabaritamos o percurso. Na descida já estava amanhecendo e percebemos que se a gente corresse, chegaríamos antes do corte. Depois de descer e cruzar um pasto, atingimos a estrada.
A equipe, de tão pilhada em chegar antes do corte, se separou e o Rafa saiu ventando na frente. Eu tentei acompanhar mas acabei ficando sozinha e o Fuentes e o Marcio vinham atrás, tentando um acordo com o pé do Marcio, que já foi para a prova se recuperando de uma torção. Esse trajeto que percorri sozinha foi uma enxurrada de emoções; no começo eu ria de felicidade... "Caraca! Vamos chegar no PC uma 8.20 e claro que poderemos passar pelo corte!". Chorava de dores na bolhas do pé - “Nossa tá demorando para chegar será que o caminho é esse” - “O tempo ta passando” - “Putz vamos morrer na praia!” - “Cadê o Robinson que não vem buscar a gente correndo” - “Ok já entendi, não vai dar tempo, mas quero continuar correndo” - “Quero morrer lutando”
E foi exatamente assim que estava me sentindo; sabia que não chegaríamos mais a tempo, mas isso não era o suficiente para me fazer parar de correr, nem isso, nem as bolhas do meu pé iriam me parar, eu queria correr, correr com aquela sensação “Lutamos, fomos guerreiros” - “Animal meu pé ta doendo muito!” - "Animal, to correndo e hoje é sexta feira, o quinto dia de prova".
Mas à frente encontrei o Rafa sentado e esperando “Que pena!”. Juntamos a equipe, nos parabenizamos pela luta e seguimos completos, em todos os sentidos. Perdemos o corte por uma hora e até tentamos insistir em nos deixarem passar, mas regras são regras. Dormimos, comemos, fizemos uma transição com todos os minutos que tínhamos, ou seja, 4 horas para nos deslocarmos até o PC25 e sair remando.
Fazíamos parte de uma conspiração divina; o céu estava azul e o sol brilhando para o nosso último trecho de remo. Entramos na água em clima de festa em caiaques ainda cheios de lodo de 5 dias atrás. Os 16Km até o PC26 pareciam o dobro. Pegamos uma corrente contra e parecíamos não sair do lugar. O Fuentes e eu desenvolvemos uma técnica para que a gente pudesse abrir a vela mas o vento não era perfeito. A gente remava em uma diagonal e pegava o vento com a vela na outra. Não foi 100%, mas sem dúvida alguma nos divertimos e eu tinha alguns minutinhos para descansar o braço.
O que poderia ser feito em 3 horas demoramos 5 horas. Paramos rapidamente na praia, encontramos a Sandra e o Robinson, que nos deram mais uns incentivos para a reta final, mais 10k “Até a chegada!”
A noite estava chegando, fomos premiados com o nascer de uma lua que lembrava a bandeira do japão, vermelha e enorme! Fomos no azimute seguindo as luzes da praia e um pouco antes de chegar já escutávamos a música do Ecomotion tocando e todos os nossos amigos Selva berrando... a chegada foi maravilhosa cheia de beijos, abraços e como não podeia deixar de ser as tradicionais 10 flexões SELVA!!!
Obrigada à minha equipe, Rafa, Fuentes e Marcio, todos muito guerreiros.
À equipe de apoio Chris, Fabi e Robinson pela força, ajuda e incentivo.
À todas as pessoas que contribuiram a adesivar o nosso carro de apoio, que acreditaram na gente.
Aos nossos treinadores Selva por toda preparação para a prova, e mandaram muito com o 8º lugar!
E à todos alunos do Selva por fazerem parte dessa história!
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