Depois de uma correria lascada durante os últimos dias da semana desembarquei em Floripa na sexta-feira, debaixo de uma chuva pesada e logo pensei nas condições das trilhas e no perigo de pedalar de speed no asfalto molhado se continuasse a chover daquele jeito no sábado e no domingo.
Inacreditavelmente o sol raiou com toda a sua força e beleza na manhã de sábado (já faziam mais de sete dias que a chuva não dava trégua para os locais) e a preocupação passou a ser outra: o desgaste físico e os cuidados necessários para manter o corpo hidratado durante a prova.
Sábado foi um dia de preparação total: checagem da bike depois da viagem de avião, comprar as frutas e quitutes para elaborar os sandubas e afins, organizar a logística de comidas e bebidas junto com os equipamentos nos kits de apoio, comer bem e manter o corpo hidratado, mas principalmente para manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo.
Para isso nada melhor do que a recepção dedicada e amorosa da Vivi, minha querida amiga de infância e todo o pessoal que mora com ela; um passeio até o sacolão do bairro com o Magrão, o dog serelepe e arteiro da Vivi; o clássico sorvetinho de massa do canto da Praia da Armação antes da retirada do kit de prova e um mergulho abençoado no Morro das Pedras para energizar, lógico!
Tudo parecia estar conspirando para dar certo. Consegui uma mala para a bike irada com um amigo, passagens aéreas num preço acessível com uma agência de turismo parceira, empréstimo de equipamentos “top” com o pessoal da minha equipe, enfim... Até um tênis reserva para a segunda perna de corrida eu consegui de última hora. Não tinha notado no site a logística de distribuição das sacolas de apoio durante a prova e fui para Floripa com apenas um tênis. Seriam necessários dois, caso eu não quisesse carregar o tênis da primeira perna durante o pedal e o remo. O tênis da irmã da Vivi foi o melhor companheiro durante os 16km da trilha da Costa da Lagoa até o Ratones. A sorte estava do meu lado, pois no final da trilha o saldo de bolhas era nulo. O tênis encaixou no pé direitinho. Ufa!
Preferi me reservar um pouco do agito básico e social do receptivo da prova para ficar curtindo uma onda mais caseira e acolhedora, portanto apareci no Hotel para entregar meus equipamentos e assistir ao briefing num pé e voltei no outro, sem ser notada pelos rostos conhecidos que estavam por todos os lados.
O briefing foi bem rápido e objetivo, sem muito detalhamento. A novidade foi a alteração do percurso. A administração Estadual voltou atrás e não liberou a passagem dos atletas pela Rodovia SC405 e parte da SC 406. Tivemos que pedalar por vias municipais das Areias, Gramal, Castanheira e do Campeche com várias quebradas radicais para a esquerda e para a direita. Apesar da organização garantir a presença de um fiscal em cada bifurcação esse cenário desanimou um pouco a maioria dos atletas que já havia feito o percurso anterior para reconhecimento. Além disso, todas essas bifurcações reduziríam um pouco a velocidade e desenvolvimento do pedal até a chegada na SC 406, na altura da Pedrita, onde voltávamos a pedalar no traçado original da prova em direção às Rendeiras, na Lagoa da Conceição.
Estiquei o esqueleto na suíte máster da casa da Vivi logo depois do briefing e do jantar vegetariano especialmente preparado pela Clair e pela Elis com direito a lasanha de queijo, legumes e muito mais.
Programei o despertador do celular para as 5hs da madrugada com a seguinte mensagem: Confia e vai! Quando escutei o despertador logo acordei, respirei fundo, dei aquela boa espreguiçada no corpo, confiei e FUI!
A PROVA
Largada / AT1 (Caldeirão da Armação / Pântano do Sul)
Cheguei ao Caldeirão, canto esquerdo da praia da Armação, às 6hs em ponto, de café da manhã devidamente tomado, alongada e em silêncio. Todos que ali já se concentravam tiveram o privilégio de ver aquela bola de fogo vermelha aparecendo no horizonte anunciando mais um dia maravilhoso de sol e muito calor. E para mim muito especial.
Fiz ali, sentada num balanço montado na beira mar, minha prece pedindo proteção, força e tranqüilidade para encarar com coragem a minha primeira participação solo numa prova de 90Km.
Ainda sob o som da buzina que tradicionalmente marca as largadas de provas uma sensação forte e gelada percorreu todo o meu corpo durante os primeiros 10 passos e eu confesso que não consegui pensar em nada. Foi uma mistura de alegria, euforia, adrenalina, frio na barriga e mais um monte de outras coisas. Tudo de bom! “Meu Deus Começou! Vai Fernandinha! Foco na corrida”!
O pelotão da frente disparou no tiro e eu não deixei isso me desanimar, muito pelo contrário, pois meu propósito era muito diferente dos atletas de ponta e foi muito inspirador ver a areia da praia tomada por um pelotão tão bonito!
Trotei por toda a faixa de areia da Praia da Armação e do Matadeiro até o início da trilha, depois segui no Trekking forte morro acima e pelas montanhas que separam o canto do Matadeiro da Lagoinha do Leste. Encontrei o Anderson, organizador da prova entre o Matadeiro e a Armação e seu grito de apoio foi muito bem vindo! “Bora Fernanda”!
Confesso que cheguei a pensar na possibilidade de não conseguir chegar na bike dentro do tempo limite, mas logo desviei a atenção desse pensamento pessimista e concentrei toda a minha força em comer de uma em uma hora, beber bastante água e sempre seguir em frente a todo vapor. “Se eu chegar dentro do tempo sigo adiante e se chegar depois do corte paciência: bora pegar a prancha e arriscar um surf no mar ressacado e trincando de gelado”.
Logo no início da trilha um susto: vi uma menina caída sendo assistida por um atleta, o Francisco – que se tornou um companheiro de prova durante os trechos pela frente. Já havia um pessoal da organização acionando a equipe médica e fui orientada a seguir para não tumultuar mais a situação. Fiquei bem contente quando encontrei a guria na AT da Bike recuperada e sorridente.
A trilha estava bem molhada e escorregadia. A vegetação do local camufla os muitos buracos e pedras pelo caminho, mas o visual vale o esforço. As encostas de pedra e a natureza exuberante e intocada da Lagoinha do Leste impressionam qualquer um.
Depois de literalmente “dropar” a descida da encosta e correr a praia da Lagoinha inteira numa paz e sem um atleta a vista, encarei a subida casca grossa da trilha para o Pântano do Sul com o olho no relógio! “Se eu continuar nesse ritmo vou chegar com folga”. No finalzinho da trilha o Franscisco me alcançou e chegamos juntos na AT1 para a transição às 9h16 com mais um desafio pela frente: 37km de pedal.
AT1/ AT2 (Pântano do Sul /Polícia Ambiental do Rio Vermelho)
Para a minha surpresa havia mais bikes do que eu imaginava ver na AT além da minha. Abri meu Kit de apoio para colocar a sapatilha e recebi uma abençoada caramanhola cheia de água de côco das meninas que estavam na AT. Elas fora muito bacanas e me aceleraram para terminar a transição e sair pedalante.
Subi na bike feliz da vida por ter completado o primeiro trecho e por estar super bem fisicamente. Morei na ilha durante muitos anos e o trajeto até a SC406 era familiar, portanto sabia quando podia acelerar no pedal e quando deveria poupar ou reduzir para uma bifurcação ou subida. As paisagens foram passando mais rápido do que eu sinceramente esperava e logo busquei o Francisco que tinha feito uma transição mais rápida. Speed no asfaltão é uma maravilha porque voa! Fala Sério! “Bora Frantchesco”!!!
Ultrapassei mais um atleta na subida sinistra do Morro da Mole e desci como uma bala a 65km/h em direção a reta do Rio Vermelho. Que medo!!! Faltando pouco mais de 3 km até a AT2 ultrapassei mais um atleta que fazia a prova na categoria solo sem apoio exclusivo – Emilio - que também se tornou a partir dali um companheiro de prova.
Cheguei à abençoada transição para o remo mais cedo do que eu imaginava e rapidamente me aprontei para ir para a água e dar um descanso para as perninhas que queimaram na subida da Mole.
No caiaque normalmente é o momento da prova onde me sinto mais integrada e em casa. Saí remando junto com o Emilio e 5 minutos depois do Franscisco, mas logo os perdi de vista quando olhava para trás a procura deles. Passei mais um atleta no remo e na medida em que eu ia me observando e observava os outros uma força dentro de mim ia crescendo e colocando a chegada cada vez mais próxima e possível. “Será?”
O visual da costa da Lagoa, a mata, a grandeza das dunas da Joaquina que não cansam de invadir a Av das Rendeiras, o Morro da Armação e todos os elementos que compõem a paisagem de quem vem remando do Rio vermelho em direção ao Sul é único e emociona.
Remei, remei, remei e entre uma remada e outra sobrava tempo para apreciar o visual e agradecer o privilégio de ver tudo aquilo de um ângulo extremamente especial e desafiador.
Não parei para nada! Consegui montar um esquema para beber água sem precisar parar de remar e foi assim que avistei a primeira bóia e o pórtico amarelo da AT3. “Uhuuu!”.
Quando eu estava quase chegando olhei para trás e só de pensar que eu teria que correr pela Costa da Lagoa praticamente tudo que eu havia remado percebi que a partir dali teria que observar muito meu corpo, respeitar meus limites para não quebrar no meio do caminho e principalmente administrar o tempo e a mente.
Na AT3 mais pessoas solidárias à minha situação de sacoleira órfã de apoio. Troquei na hora meu gatorade quente por uma coca-cola gelada que caiu do céu, abasteci minha mochila com sanduba e frutas, pois a perna era longa e parti no trote.
AT3 / AT4 (Av. Das Rendeiras / Ratones)
Novamente para a minha surpresa fui mais longe do que imaginei conseguir. Trotei até o início da trilha do Canto dos Araçás sem dor quando decidi intercalar alguns trechos correndo com períodos de caminhada rápida para poupar o joelho.
Sempre de olho no relógio e molhando a cabeça a cada riacho que cruzava a trilha, obedecia aos alarmes de uma em uma hora para consumir alguma coisa e repor as energias e fui avançando em direção a próxima AT.
Durante horas não encontrei mais ninguém e naturalmente aproveitei a tranqüilidade para curtir de verdade tudo aquilo e já começar a avaliar os trechos anteriores percebendo a presença de uma satisfação e plenitude em cada momento vivido. Até trechos do relato saltitavam na cabeça.
Depois de enjoar das bandeirolas amarelas que demarcavam a trilha finalmente um fiscal da organização. “Anote aí moço: 87 é o meu número!” Passei por ele e segui as orientações de preferir sempre a trilha da esquerda até o Ratones.
Eu continuava bem fisicamente e confiante na chegada da próxima AT. Só não sabia se conseguiria chegar dentro da tolerância para o percurso de remo.
Fiquei em dúvida em uma bifurcação e voltei duas vezes para conferir. Essa hora pensei: “Ficou faltando uma bandeirola amarela por aqui! Ai ai aiiii! Mas porque não temos um mapa? Seria tão mais fácil agora”... Eu não podia perder tempo e quando decidi seguir pela direita, diferente do que o fiscal havia falado, encontrei quem? O Emílio! Ebaaaaaa! Alguém por aqui!!! Seguimos juntos pela direita e logo avistamos inúmeras pegadas e aceleramos o trekking junto com o papo.
O Emilio estava nitidamente cansado, mas determinado a chegar no Ratones, assim como eu. Quando chegamos ao asfalto isso significava mais 3km até a AT. Olhei no relógio e uma força surgiu do nada e pilhei o Emílio para seguir trotando. As pernas estavam pesadas, mas mesmo assim segui na frente e o Emilio na minha cola. Estávamos quase no limite do corte e era uma decisão estratégica forçar um pouco naquele momento.
Foram os 3km mais longos de toda a prova, mas chegamos! E lá descobri que o Francisco vinha na nossa bota depois de ter naufragado com o seu caiaque na Lagoa. Ele já estava desclassificado, mas continuou na prova mesmo assim depois de ter sido resgatado pela lancha da organização e levado até a AT3. Guerreiro!
AT 4 / AT 5 (Rio Ratones / Daniela)
Minha alegria por estar ali pegando o caiaque, meu brinquedo favorito, e já ter passado pela parte mais dura da prova com serenidade e paciência não tinha tamanho.
Saímos os três juntos e fiquei impressionada porque, novamente remando deixei os meninos para traz e parti para mais um longo, silencioso e solitário trecho de remo pelo mangue em direção a praia da Daniela.
Sozinha e em paz percebi que a maré estava vazando. Primeiro pensamento: “Ótimo! A maré está ajudando”... Segundo pensamento: “Péssimo! Está ficando cada vez mais raso e corro o risco de atolar aqui nomeio do nada” Aumentei a cadência e segui a diante.
Eram mais ou menos 17h quando o céu começou a ensaiar uma chuva de verão e tudo ficou tomado de nuvens sinistras. “Até que uma chuvinha não seria nada mal para refrescar o dia, não é?” Acontece que a chuva virou um temporal nervoso e eu, sozinha no meio do nada, segurando um remo de ferro na mão fiquei aterrorizada com os raios e com a perda total de visibilidade.
A chuva vinha de frente e mesmo com o boné e óculos era difícil manter os olhos abertos. Comecei a rezar enquanto remava incansavelmente pelo canal raso. Ainda tinha a margem para me orientar nesse local. E seu eu chegasse ao mar aberto com aquele temporal? Como eu seria capaz de visualizar a antena de celular e remar em direção a AT?
Continuei remando e rezando até a chuva descarregar toda sua força e aos poucos consegui ver um atleta remando na minha frente em direção ao ponto onde possivelmente deveria estar localizada a AT 6.
Pode parecer exagero, mas nessa hora uma luz cinematográfica tomou conta de uma parte do céu e iluminou o finalzinho da chuva formando um arco-íris duplo na direção oposta da Praia da Daniela. Surreal! Pra fechar com chave de ouro essa experiência inédita que eu me propus viver.
Mas como nem tudo são flores, num piscar de olhos todo o romantismo da cena virou um filme de terror quando me vi atolada no mangue e tendo que empurrar o caiaque “a lá Ecomotion Pro 2007”. So-co-rro! Mas a garra era tanta de terminar a prova, pegar a bike e partir no tiro os últimos 5 km de bike que desci do caiaque e falei alto: “Ah é?! Se é assim, vai ser assim e pronto! Sem problemas! Isso é pequeno perto de tudo que já ficou pra trás”. Desenvolvi uma técnica para não perder o tênis na lama e FUI!
Percebi uma faixa de água mais profunda depois do banco de lama que tinha aparecido e consegui avançar mais um pouquinho na remada, mas acabei o trecho arrastando aquele peso pesado sem outra opção.
AT5 / AT 6 (Daniela / Jurerê)
Que saudades da minha bike! Coloquei a sapatilha no susto, comi a passoquinha mais saborosa da minha vida e pedalei em direção a Jurerê sem conter a emoção de estar próxima do final.
CHEGUEI!
Fui recebida com muito carinho pelos amigos. Muitos com uma cara de espanto, pois não imaginavam ou esperavam a minha participação solo na prova, mas felizes, assim como eu. A prova foi dura, mas também muito linda e sem sombra de dúvidas uma experiência única para cada um dos participantes, pode apostar!
Para mim o que de mais importante fica é a certeza de que a natureza, a superação no esporte e a vontade de fazer acontecer, de seguir em frente e realizar um sonho são nutrientes capazes de fazer nascerem os mais saborosos frutos num terreno, a princípio, infértil. São elementos transformadores que nos tornam mais humanos, mais fortes e mais felizes.
OBRIGADA à TODOS vocês que fazem parte dessa minha história!
Fernanda Campos
Equipe Waimiri Atroari
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