O sertanejo é, antes de tudo, um forte. - Relato da equipe Gantuá no Brasil Wild Extreme

Por Pedro Martins - Equipe Gantuá - 16 Abr 2008 - 09h34
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” Euclides da Cunha.

Estou sentado diante do computador e ao meu lado um copo d’água repleto de cubos de gelo. Por diversas vezes olho e admiro como se nunca tivesse visto. Após esses dias no sertão varias coisas simples, como uma pedra de gelo, passaram a possuir significados diferentes dos que antes atribuía. Coisas consideradas simples e básicas foram visualizadas e valoradas de outro modo e, assim sendo, tantas outras coisas consideradas difíceis passaram a meu ver a serem tão mais fáceis.

O acesso à água, aos meios de comunicação, a alimentação, o transporte... O Sertanejo é um forte e essa experiência intensa e imensa que passamos nessa prova, com absoluta certeza nos fortalece também. O estilo vida desse povo e sua relação intensa com a natureza são marcantes. Não há como ser diferente vivendo sob um sol escaldante, rodeado de pedra, areia e espinhos. Ai daquele que se aventura pelos matos sem a proteção do gibão de couro, sem chapéu e sem água. A natureza castiga a vida que teima em sobreviver e aquele povo forte não se amargura com a vida que leva, pelo contrario, é um povo lindo, alegre, e imensamente hospitaleiro. Impressiona o lugar onde cactos vivem às margens dos rios e ao mesmo tempo crescem suculentas melancias, cajás, siriguelas e umbus.

Nos preparamos desde o inicio desse ano de 2008 para essa corrida. Os números eram assustadores: 650 km, 5 dias!! Estávamos cientes de que para uma empreitada dessas não bastava a força de vontade, seria necessário uma preparação bem planejada, tanto no que se refere à equipamento quanto ao preparo físico. Seria também uma corrida de grande importância para a equipe já que valeria pelo Circuito Baiano de corrida de Aventura e pelo Circuito Nordestino também.

Em cima do muro entre correr e não correr e as coisas foram acontecendo pra gente. A Curtlo nos deu um imenso apoio de equipamentos, a Integralmédica com os suplementos, o Centro Educacional Maria José - CEMJ e a Gol de Placa e ainda o grande apoio da Granola Tia Sônia. Com toda essa ajuda pudemos adquirir um novo vestuário, novas bikes, remos de carbono, lanternas e etc. Algumas coisas ainda faltaram e os amigos, mais uma vez, nos ajudaram. Agradecimentos mil a Dilton Dultra, Anderson, Josemar, Clovis e Daniel Insano.

Graças à organização de Ângelo estava tudo pronto pra prova. Embarcamos em direção a Paulo Afonso em comboio com a Espírito Selvagem. Mais uma vez a Gantuá com a formação Pedro (Eu), Alan, Sana e Ângelo.

Alojamento do exército e como sempre aquela impressão quando vejo as equipes de fora: equipamentos de ponta, os caras imensos, cheios de experiência... será que dá?

Partimos com nosso objetivo bem claro e definido: completar a prova. Como objetivos secundários uma boa colocação no baiano e no nordestino e tentar chegar entre os 15 primeiros, mas, o foco durante a prova seria o equilíbrio com o fim de completar.

Recebemos os tão esperados mapas e fomos bolando as estratégias e os roteiros a serem percorridos. A organização havia elaborado uma carta com Postos de Controle (PC’s) obrigatórios e outros facultativos. Caso a equipe resolvesse percorrer maiores caminhos em busca dos facultativos, esta receberia um bônus de tempo que seria deduzido do seu tempo final de chegada na prova. Logo de cara resolvemos não nos arriscarmos a buscar os Pontos Facultativos já que a nossa preocupação era a de se manter na prova e atingir os Pontos de Corte antes do horário estipulado pela organização.

Largamos sob um sol escaldante. Eu e Alan com os caiaques e Ângelo e Sana nadando. A correnteza estava fortíssima e a confusão foi geral. Mais de 200 pessoas buscando se encontrar no meio de uma gritaria intensa, ducks se chocando, pessoas nadando e sendo atropeladas pelas embarcações, redemoinhos... Nos encontramos e começamos a remar numa estratégia bem cautelosa de paradas programadas e pouca intensidade, afinal seriam 5 dias de competição....

A natureza intensa mostrava desde já sua força: o sol escaldante, as fortes correntes e ventos que chegavam a frear a embarcação. Tudo isso num cânion de paredes altas de pedras que nos cercavam e ficava a imaginar se haveria algum lugar naqueles paredões onde alguém pudesse escapar dali caso algum acidente ocorresse.

Remamos num ritmo confortável com paradas para alimentação, os ducks amarrados e, optamos por dividir a equipe numa trilha que ficava na entrada do braço do rio que daria no PC 1. Essa trilha estava constando na carta e após margearmos um pouco a encontramos. Decidimos que eu e Sana faríamos esse trecho por ser menor e assim estaríamos poupando metade da equipe.

Nos dividimos e saímos para o que considero o trecho mais travado e difícil da prova. Era noite de Lua Nova e apenas nossas lanternas clareavam o caminho. Nunca vi tanta urtiga e variedade de espinhos juntos. A trilha aparecia e se perdia como por encanto e por diversas vezes não sabíamos para onde ir. Nesse momento senti um enorme arrependimento pelo roteiro que fizemos e não havia opção que não fosse a de encarar a floresta de espinhos e tentar chegar ao PC. Pensava nos meninos se distanciando de barco e aquilo me agoniava mais ainda. Esse arrependimento misturado com agonia me deixou sem ação. As trilhas se perdiam e íamos e voltávamos numa progressão muito lenta. Sana tomou a frente da situação e com uma energia imensa passou a pisar firme, invadir os matos e descobrir as trilhas.

No meio do nada encontramos uma cerca de arame farpado. Um alívio. Sinal de civilização! Beiramos a cerca e nos deparamos com um pasto. Pela ausência de estrumes era um velho pasto em desuso, mas de qualquer forma apontava um caminho à civilização. Beiramos a cerca e andamos no rumo de onde julgávamos estivessem as trilhas que dariam no PC. Andamos por algumas horas e os caminhos novamente se fechavam e abriam. Decidimos dormir e aguardar o dia raiar. Eram quase 3 da manhã.

Acordamos com os passarinhos e com o clarear do dia, e rapidamente estávamos prontos para prosseguir. Sana tomou o mapa da minha mão e eu apenas queria seguir na direção onde o caminho estava mais aberto a fim de encontrar uma estrada maior que me levasse à algum ponto mais civilizado. Sana não largava o mapa e identificou o ponto onde estávamos. Logo nos encontramos com uma estradinha e com algumas equipes passando por ali naquele momento. As pessoas dessas equipes nos relataram que os caminhos estavam difíceis e que tinham passado perrengues na noite também. Disseram que o caminho que Alan e Ângelo estavam vindo estava muito difícil. Daí eu disse “queira Deus que Ângelo esteja no PC quando eu chegar...” e me responderam “ só se Deus quiser mesmo...”.

Deus quis, ou melhor, Ângelo mandou muito bem na navegação e fez o terceiro melhor tempo entre os PC’s 1 e 2 de todas as equipes!! Comemos, nos reabastecemos e seguimos na prova na 37ª posição. Trekking. O dia ainda começava, mas o sol já se fazia doer na pele. Os pés estavam castigados da caminhada noturna com tênis molhados e toda a equipe resolveu seguir de sandálias.

Caminhamos forte com as mesmas paradas programadas para comer e, no fim dessa modalidade terminamos na 18ª posição. Contamos para isso com uma caminhada muito forte, poucas paradas e uma estratégia acertada nas opções de caminhos, principalmente na busca do Pc virtual 3 onde seguimos separados e o encontramos sem utilizar o caminho mapeado pela organização.

Transição para Bike. Chegamos ao ginásio com fome e mesmo sendo começo da noite a equipe decidiu dormir um pouco por entender que aquele seria o local mais apropriado para descansar que encontraríamos durante toda a noite. Uma moradora local nos acolheu e fomos para na casa dela. Tomamos banho e fomos jantar num restaurante próximo. Comemos muito e muito bem e depois dormimos por 3 horas na casa da nossa anfitriã. Resultado: uma parada para dormir 3 horas e o jantar nos custaram 6 horas! Foi tempo demais perdido em arrumar as coisas, aguardar o jantar ficar pronto, tomar banho...

Beleza! Vamos nessa! Trecho de bike em estradão, roteiro mudado pela organização e atingimos os PC’s com tranqüilidade. Os ânimos da equipe já se podiam sentir variando e por enormes momentos só escutávamos o que não era voz humana.

Transição para um longo trecho de tekking e mais uma vez a hospitalidade sertaneja se fez presente, literalmente. Recebemos 4 pratões de comida caseira feita na hora. E ai daquele que quisesse pagar! Comemos de encher o bucho e ainda levamos uma sacolinha para a trilha.

Trilha pesada sob um sol fortíssimo. Só pensávamos na dificuldade que as equipes do sul e sudeste estariam passando e isso aliviava um tanto o nosso sofrimento. Fizemos um pequeno corte em trilhas não mapeadas e assim passamos outras equipes e seguimos decididos para o PC 8. Após uma subida forte, onde pisávamos em areia, encontramos uma casa de farinha e um casebre. Pedimos água e ficamos encucados de onde aquele povo conseguia água ali, em cima da Serra. E não é que eles pegavam água lá embaixo e traziam de carroça!!! Água pra beber ! Tenho olhado pras torneiras de um jeito...

Fora algumas paradas para catar umbus, siriguelas e cajás, seguimos forte até o ponto de água já embaixo da Serra e lá, encontramos nossos amigos brasilienses Oskalungas. Paramos um pouco pra molhar a cabeça e hidratar e conseguimos chegar logo após o pôr do sol ao Pc 8.

Mais uma vez uma parada demorada para esperar a comida ficar pronta e resolvemos sair sem dormir a fim de não pegar o horário de corte no PC 9. A equipe que chegasse após às 05:30 da manhã não faria a prova completa e seguiria do PC9 direto para a chegada. Vamos nessa!! Seguimos de bike e logo a cabeça do navegador aqui começou a embaralhar. Pedi à galera para dormir 20 minutos. Paramos numa pracinha e nos aninhamos num bar. Deitei sobre a mesa de bilhar e desabei num ronco profundo que Alan, após 20 minutos, me deixou dormir mais 20 pela intensidade do sono que ele viu.

Pronto! Vamos nessa! Resolvemos fazer um percurso um tanto maior para evitar carregar a bike nas costas e atravessar a serra. Subimos uma ladeira imensa, mas trazia um sorriso no rosto, pois via que a carta acusava uma enorme descida em direção ao PC9. Ledo engano.... A descida era completamente travada e nossos planos de não sermos cortados começaram a ficar ameaçados. A galera se pilhou e aumentamos o ritmo. O dia raiava e o relógio sorria irônico para nós. Vamos nessa!! Podíamos ver a cidade bem próxima, mas havia um emaranhado de caminhos que confundia a todos. Respiramos fundo e invadimos o roteiro certo, num tiro de 10km que só parou em cima do PC, a 5 minutos do corte e ainda com um pneu furado. Ufa!! Que alivio... “Alivio nada!! Vocês tem cinco minutos para pegarem suas coisas e saírem do PC senão serão cortados!!!” Putz! Bora Gantuá!!!!! Sana pegou o rango, outro deixou as bikes, outro pegou coletes, remos e assim, em 5 minutos fizemos a transição mais rápida da nossa historia.

De lá fomos para uma padaria, tomamos café da manhã junto com Oskabas, depois cochilamos um pouco e entramos novamente nas embarcações. Alan havia projetado uma vela só que não tivemos tempo de testar... Para nossa sorte funcionava perfeitamente e partimos na estratégia de 1 dormir e outro remar. O duck empurrado pelo vento atingia a velocidade próxima ao duck com 2 pessoas remando. Massa!! Agora descansaríamos enquanto progredíamos e quando atingíssemos o PC teríamos gás para passar as equipes que estavam na nossa frente.

Ângelo dormiu umas 3 horas e passou a fazer o leme. Desabei também por umas 3 horas e, quando acordei não sabia exatamente onde nos encontrávamos no mapa. Fácil! “Olha ali aquela curva... olha ali aquela entrada... olha ali aquele morro... hummmm... estamos aqui!” Beleza! Logo após uma curva do rio visualizei o local exato do PC. Direcionei o barco para lá e fomos. Quando olho pra trás vejo Sana e Alan seguindo direto o curso do rio. Nos desesperamos. Gritamos, apitamos feitos loucos! Remávamos na direção deles, mas, a posição da vela deles fazia que o duck deles fosse muito mais rápido que o nosso e ainda, o nosso estava murchando. Remamos ate a beira e corri pela margem para ver se os alcançava, até um outro braço de rio aparecer na minha frente freando minha progressão. Encontrei com Ângelo, enchemos o duck e seguimos velozmente até os meninos que já haviam parado o barco e nos xingavam a todo volume!

“Vamos voltar! O PC já passou, tá lá atrás!” E voltamos, mas, cadê o PC?? Não era lá... A noite caiu e os ventos aumentaram muito formando verdadeiras ondas no rio. Fomos na direção das ondas e a velocidade era adrenalizante. Por diversas vezes surgiam galhos de árvores antigas que foram submergidas. Num desses desvios desses galhos uma forte onda chegou a derrubar Ângelo do barco. Muito rápido o barco se distanciava de Ângelo e só ouvíamos sua voz, o barulho do vento e víamos o barco se afastando cada vez mais. Conseguimos resgatá-lo e decidimos seguir pela margem mantendo uma certa distancia com a certeza que assim alcançaríamos o PC 11.

Rumamos a toda velocidade e de repente a margem surgiu a nossa frente. Deveríamos seguir a certa distância e contornar a enseada e em poucos quilômetros alcançaríamos o PC. Mas o vento e a força das ondas não nos deram qualquer opção que não a de ser jogado à margem. Levamos os ducks para longe das pedras e das ondas e fomos nos abrigar do vento que estava muito forte e frio. Montamos atrás de um arbusto um quebra vento com as velas e abrigamos Sana e Alan que sofriam duramente com o frio.

Eu e Ângelo fomos buscar uma saída por terra e encontramos uma estradinha. Na ponta dessa estrada havia um barracão onde encontramos 2 pescadores. Eles nos explicaram melhor o caminho e retornamos ao nosso “acampamento”. O frio castigava Sana e Alan. Pensamos na opção de eu seguir com os 2 por terra enquanto Ângelo seguiria com os dois barcos em direção ao PC. Fiquei na margem acompanhando a progressão dele mas concluímos que não havia condição, “deixa o dia amanhecer.” Paramos no nosso acampamento mas o frio doía nos ossos. Decidimos ir até o acampamento dos pescadores. Chegando lá fizemos uma fogueira, sopão, café e conseguimos assim amenizar o frio e deixar o dia chegar com mais tranqüilidade. A essa altura a vontade de chegar ao Raso da Catarina havia ido literalmente por água abaixo e a briga com as outras equipes também. Éramos os últimos a termos passado do corte o que significava que todas as equipes que estavam atrás de nós seguiriam por outro caminho. Então nenhuma equipe poderia nos passar. Por outro lado, não poderíamos passar ninguém pois, após uma noite perdida, certamente as equipes haviam se distanciado muito de nós. Certos de nossa condição, dormimos o que pudemos enrolados em sacos de linhagem cheirando a peixe e quando o dia raiou voltamos aos remos.

Próximo do PC avistamos ainda 1 equipe o que nos animou muito. Afinal não fomos os únicos a perder a noite no Velho Chico. Porém essa equipe havia passado no PC facultativo “0” o que dava 4 horas de vantagem sobre a gente, algo que seria muitíssimo difícil de recuperarmos. Resolvemos seguir na tranqüilidade com o único objetivo de completar a prova sem maiores desgastes.

Assim, paramos para comer. Paramos para nos poupar do forte sol entre as 11h e as 2h da tarde. Paramos para comer umbu, melancia, bode assado e assim fomos progredindo lentamente até o PC 12 e depois PC 15. No PC15 comemos, dormimos e ao raiar do dia seguimos para Paulo Afonso. Nesse trecho houve um problema de comunicação com a organização que nos indicou a seguirmos direto para a chegada, garantindo que não haveria qualquer penalidade. Fomos lentamente até o pórtico e quando chegamos lá a informação foi mudada. O tempo então ficou curto para que chegássemos às 10:30h da manhã sob o risco de sermos desclassificados!!!! Bora Gantuáááá!!! Pedalamos como loucos até a arena de vertical, fiz a ascenção-escalada mais louca do Wild e conseguimos chegar ao pórtico às 10:29h em 15º lugar, melhor equipe Baiana na competição e em quarta colocação no Circuito Nordestino!!! Ufa!!! Quer mais?!

O saldo da prova ainda está sendo digerido em meu corpo, alma e minha mente. Chegamos todos inteiros, sem quaisquer lesões, além de calos e bolhas nos pés. Todos fomos guerreiros e cada qual enfrentou com muita intensidade seus medos e limitações, suas dificuldades de relacionamento, seus traumas. Todos enfrentamos as limitações uns dos outros e nos apoiamos nas virtudes de cada um também. Brigamos e sorrimos juntos. Comemos e dormimos em locais nada higiênicos nem confortáveis. Todos nos cansamos ao extremo e lutamos juntos pra chegar. Todos fomos um tanto sertanejo e aprendemos muitas lições com essa jornada.Com toda certeza saímos muito fortalecidos para encarar outras situações de nossa vida. O que antes parecia difícil, depois dessa experiência há de ser encarado de outra forma. Foi Selvagem, foi Extremo, foi massa!!!
Quero mais!!!
Bora Gantuáaa!!!!!

Parabéns a todos que participaram dessa epopéia!
Agradecemos a todos os que torceram por nós!!

“Os cães ladram e a caravana não pára!!”

Pedro Martins
Gantuá – Tia Sônia, Curtlo, Integralmédica
www.gantua.com.br

Pedro Martins - Equipe Gantuá
Por Pedro Martins - Equipe Gantuá
16 Abr 2008 - 09h34 | nordeste |
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