EMA Remake: Como transformar a ansiedade em resultados?

Por Vanessa Cabral - 05 Ago 2008 - 09h14

Meu trabalho como psicóloga e terapeuta corporal tem sido direcionado fortemente para atletas que procuram melhorar sua performance através do auto-conhecimento. As grandes barreiras psicológicas a serem enfrentas estão sempre relacionadas a quadros de ansiedade, angústia e medo que costumam assombrar esses esportistas antes, durante e depois das competições.

Nestes últimos 10 dias, tive a oportunidade de sentir na pele (literalmente) a intensidade dessas emoções e sentimentos, e gostaria de compartilhar com os leitores essa experiência inesquecível e enriquecedora.


QuasarLontra Master no final da etapa de canoagem
© Wladimir Togumi


Equipe parte para o longo trekking pelo sul da ilha
© Wladimir Togumi

Tudo começou numa segunda-feira, quando recebi um telefonema de um amigo perguntando se poderia passar meu contato para o Victor da Lontra que estava procurando uma mulher para completar a equipe Máster para o EMA Remake 2008. Neste momento, até achei que fosse um trote, e minha primeira reação foi confirmar se ele não havia se enganado e ligado para a Vanessa errada. Rimos um pouco, ele me tranqüilizou, dizendo que o Victão era gente boa, e que eu iria dar muita risada com ele na prova. Mesmo ainda desconfiada, dei o OK para que ele nos colocasse em contato. Como ainda faltavam 10 dias para a prova, imaginei que conseguiríamos treinar juntos, para que pudéssemos nos conhecer melhor e ele decidisse se eu poderia realmente fazer parte da equipe ou não.

Doce ilusão. Quando conversamos por telefone, descobri que somente conseguiríamos nos encontrar dois dias antes da prova para fazer um treino rápido de canoa canadense. Além dessa informação, que colocava por água abaixo a minha estratégia para controlar a ansiedade que começava a despontar no meu estômago, descobri que o terceiro integrante da equipe era, nada mais, nada menos que o Lico do Oskalunga!

Pronto! Lá estava eu, inundada por um quadro perfeito de ansiedade (com direito a moldura): “Mas o Lico!! Nossa... Ele é bravo? Como ele é competindo?”. Foi a primeira pergunta que me veio à cabeça, num momento onde me sentia lisonjeada pelo convite, mas ao mesmo tempo a caminho de um matadouro. Não conseguia me imaginar correndo com esses dois atletas tão fortes. Meu corpo respondeu imediatamente com um calafrio na espinha e um suor frio. Minha cabeça parecia que ia explodir.

Victão procurou me acalmar, falando super bem do outro atleta, e que iríamos fazer a prova com tranqüilidade. Fiz questão de deixá-lo à vontade para que procurasse outra mulher mais forte. Conversamos bastante por telefone, expliquei que não estava treinando muito, pois o trabalho estava consumindo boa parte das minhas horas durante a semana. Contei um pouco sobre as provas que já havia feito – sempre com uma preocupação de não gerar expectativas com relação à minha performance.

Os dias que antecederam a prova foram intensos: dormia mal, comia mal. Meus sonhos eram confusos e cansativos. Um buraco negro fez questão de se instalar no meu estômago... Convivia com essa sensação de vazio 24 horas por dia, só aliviando nos momentos que eu saía para dar uma corridinha ou um pedal. Mas também sabia que nem adiantava treinar muito naquela altura do campeonato. O lance era me cuidar, girar as perninhas, descansar e me alimentar bem, para entrar na prova com o sistema imunológico 100%.

Quarta-feira, 30 de julho (2 dias para prova). Fui até a USP conhecer pessoalmente um dos meus parceiros para a prova. Remamos a canoa, conversamos durante o treino. Victão com sua ampla experiência ia me contando o que deveríamos fazer, o que precisávamos levar, etc. Acertamos os objetivos da equipe:
1º - Chegar na frente dos Neozelandeses de 2000, que haviam conseguido o primeiro lugar com um tempo de 39 horas e 57 minutos. (uma pontadinha no estômago)
2º - Ganhar a categoria Máster (buraquinho no estômago)
3º - Chegar entre os 10 primeiros (buraco Negro!)
4º - Chegar entre os 5... (Estômago? O que é isso?!)

Ao ouvir o último objetivo, comecei a rir de nervoso, e novamente falei para meu parceiro como eu me considerava uma mortal perto deles. A objetividade e organização do capitão da equipe me davam segurança, mas a situação de pouco treino para uma prova de 250km me deixavam muito insegura. A pergunta que não me deixava era: “Nossa... será que eu dou conta?!”. Era impossível responder racionalmente a isso, pois eu não tinha nada no meu histórico de atleta amadora que me acalmasse. Estava diante do maior fantasma que alimenta a nossa ansiedade: o desconhecido.

A noite que antecedeu a prova foi digna de cinema: sonhos com cachorros grandes, suor frio banhando os lençóis, coração disparado, lábios frios, sensação de desmaio...

No café da manhã, mal conseguia olhar para a comida. Os dois guerreiros se alimentavam alegremente. Compartilhei com eles o meu sofrimento, e eles fizeram de tudo para amenizar a minha agonia... Mas o fantasma continuava lá.

Bikes e equipamentos no carro. Todos na praça. O banheiro da padaria salvou a pátria. Subindo no comboio, nosso rack começou a dar problema. Tivemos que contar com a solidariedade das outras equipes para transportar as nossas bikes até a largada. Minha pulsação estava acima dos 150bpm. Ainda dentro do carro, o Lico segurou as nossas mãos, numa corrente de energia positiva. Os meninos colocaram nossas bicicletas bem na saída do pórtico. Tínhamos a preocupação em largar bem para chegar entre os primeiros para o remo, o que me colocava outro desafio: íamos encarar um trecho inicial de downhill, o que era novo para mim, pois sempre fui uma atleta cautelosa, que evita ficar no bolão.

Victão botando pilha, e Lico procurando me acalmar. Eles perceberam meu estado de quase surto e me disseram: “Calma Vanessa, vai no seu ritmo. A gente vai atrás de você. Muito cuidado nessa descida!”.

Hino nacional, algumas palavras da esposa do Alexandre, emoção... contagem regressiva... 10, 9, 8, ... já não escutava mais nada... Só ouvi a buzina e despenquei morro abaixo, no tão temido bolão. Entre gritos de “esquerda”, “direita”, “Cuidado!”, conseguia ouvir a voz do Lico: “Cuidado Vanessa! Vai devagar!”... “beleza, ta indo bem...”... “cuidado, ta muito rápido”... E assim ele foi dando uma de anjo da guarda. Depois da pior descida, soltei um grito enorme! Senti um alívio no peito, e percebi que meu coração já conseguia bater num ritmo suportável, e a força nas minhas pernas tinham voltado: agora sim eu conseguia me sentir inteira e com energia.

Fizemos um pedal forte, chegando para a transição no PC01 em 4º lugar. Eu estava nas nuvens, feliz por ter cumprido a primeira etapa dentro dos nossos planos. Percebi nos meus parceiros a mesma animação. O planejamento do Victão e nosso apoio Serjão nos ajudaram a não perder tempo na troca de roupa e saímos rapidinho.

Os 35 km de remo ajudaram a criar uma sintonia na equipe, uma vez que nunca havíamos corrido juntos. Eu fiquei no meio, com a tarefa de contar o número de remadas e alimentar o resto da equipe. Histórias engraçadas começaram a surgir, tornando essa etapa mais rápida e engraçada. Fizemos três portagens, na tentativa de ganhar algum tempo. Ao voltar para a represa, percebemos que haviam três equipes atrás de nós. Chegamos a acreditar que estávamos em primeiro lugar, mas ao chegarmos no PC03, descobrimos que ainda continuávamos em 4º lugar. Durante o trekking de 2,5km que separavam a represa do ponto onde encontraríamos o nosso apoio para pegar as bikes, a Landscape nos passou.

Fizemos uma transição rápida novamente, trocando a roupa e nos preparando física e psicologicamente para o trecho mais temido da corrida: enfrentar 90km na estrada de Salesópolis - Caraguá durante a noite e chegar até Ilha Bela. Com meu histórico de trauma por hiportemia, coloquei na minha mochila um anorak e um fleece que me dessem a garantia que não sentiria frio algum durante a madrugada (a previsão era de 4º C). Comemos comida quentinha feita pelo apoio e recebemos a ajuda carinhosa de apoios de outras equipes.

De barriga cheia, roupas limpas e secas, voltamos para a estrada. Teríamos mais uma hora de luz natural, e depois enfrentaríamos o percurso com nossas lanternas.

A digestão foi feita durante o início do pedal, quando giramos bastante, procurando adaptar o corpo à nova modalidade.

Entramos no trecho mais difícil, encarando subidas intermináveis logo de cara, o que abalou consideravelmente o meu psicológico. A equipe AKSA nos passou nesse trecho, me deixando preocupada, pois tinha consciência de que o meu desempenho havia caído bastante. O Victão veio perguntar se eu estava sentindo alguma coisa, e compartilhei com ele o meu medo de quebrar nessa prova, pois não conhecia esse percurso de bike, e não sabia o que vinha pela frente. Ele procurou me acalmar, me orientando a comer e me hidratar: “Fica tranqüila Vanessa, se você fizer certinho a sua alimentação, você não quebra”. O problema, é que eu sabia que não estava conseguindo me alimentar da maneira correta. Eu estava comendo menos da metade das coisas que os meus companheiros de aventura comiam. Comecei a me esforçar mais para não deixar o nosso ritmo cair, mas não estava tendo sucesso.

Este foi outro momento crucial, onde o Lico ficou ao meu lado, me ajudando a encontrar um ritmo de pedal que não me sobrecarregasse. Com uma voz calma e doce, o guerreiro me dava toques toda vez que me percebia ofegante. Para me ajudar ainda mais, pegou minha mochila, aliviando bastante o meu peso.
E fomos assim durante todo o trecho: nas subidas girávamos até onde conseguíamos, empurrando quando ficava impossível; nas descidas aproveitávamos para ganhar um pouco mais de tempo – acabei fazendo um curso intensivo de técnicas de pedal durante a prova... Valeu Lico!!!!

Na descida final para Caraguá – momento que nos exigia atenção redobrada em função das descidas fortes, erosões, buracos e pedras soltas pelo caminho, encontramos a AKSA (equipe masculina, ou cuecas sujas, para os íntimos), que já estava no seu quinto pneu furado e sem câmaras extras. Eles já estavam se preparando para descer o último trecho com a bike nas costas, quando o Lico prontamente cedeu a sua câmara para eles. Fiquei feliz de ver aquela cena, e mais orgulhosa da equipe da qual estava fazendo parte.

A natureza chegou a nos presentear no final da descida com uma cena de cinema: estávamos entrando no asfalto em direção ao apoio, quando um bichinho sai do mato e cruza a pista. O Lico, que estava na frente gritou, dando risada: “Meu irmão!!! Olha só!!! É uma Lontra!!!!!!!”

Esfreguei os olhos, não podia acreditar, mas era verdade. O animalzinho andou um pouco pelo acostamento, como se quisesse nos dar um “Oi”, e depois sumiu novamente no meio da vegetação. A cidade de Caraguá deve ter acordado com nossas risadas e gritos: “’E isso aí!!! Lontra Máster!!!! Aquele momento trouxe mais força ainda para a equipe.

Acordamos nosso apoio, comemos pizza e fomos para São Sebastião. Já tínhamos mais de 18 horas de prova, e aproveitamos a espera na balsa para nos reabastecer e trocar as roupas para o trekking de 44 km que nos aguardava. Já alimentados e com roupas secas, conseguimos dormir nos bancos da balsa durante a travessia. Meu corpo começou a esfriar, mas meu cansaço era tão grande que eu nem cogitava a hipótese de ir para dentro do carro. Foi nesse momento que o super Serjão leu os meus pensamentos e me cobriu com um saco de dormir: pronto, casulo perfeito!!! Foram os 10 minutos de sono mais maravilhosos da minha vida! Saímos da balsa pedalando, deixamos a bike no PC e partimos para a volta na Ilha.

O dia estava amanhecendo, só os pássaros faziam barulho... Eu me sentia muito bem, com forças para continuar a nossa batalha. Imprimimos um ritmo forte de passadas, avançando em direção a Castelhanos. Na entrada do parque, vimos a Landscape dormindo em uma casa de madeira, e acabamos acordando a equipe que, depois de alguns minutos, nos passou correndo. Este foi outro momento hilário da prova: ver o Lico e o André abraçados na trilha, levando conversa de “brother”, onde o nosso navegador pedia algumas dicas para o André que dominava a região.

Eles se afastaram, nós aceleramos o passo na descida, mas os perdemos de vista. Os primeiros 18 km foram mais tranqüilos, porém a trilha até o Bonete me colocou à prova novamente. A mata fechada e a falta de ventilação, somadas com o meu cansaço e alimentação deficiente começaram novamente a afetar o meu rendimento. A equipe estava empenhada em recuperar o 4º lugar, mas percebi que eu não conseguiria continuar subindo aquela mata fechada no ritmo desejado.
Quando senti que estava chegando no meu limite, parei e pedi ajuda aos meus companheiros, que lidaram com a frustração de maneira excepcional. O Lico me fez sentar na trilha, transferiu todo o peso da minha mochila para a dele, inclusive meu capacete, me deixando somente com o camelback. Em seguida, fazendo várias piadas, me deu sua água com R4, e esperou até sentir que o meu pulso havia voltado ao normal.

Aí nos levantamos e ele prosseguiu num ritmo bem leve, que me ajudou a recobrar as forças novamente e acreditar que seria capaz de terminar a prova.
Sua navegação foi perfeita, e fizemos muito bem este trecho, chegando ao PC10 bem próximos novamente da Lanscape. Mais uma vez, André e Lico se encontraram na trilha, mais risadas e cenas hilárias que vou guardar para o resto da vida.

Este reencontro despertou novamente na nossa equipe o desejo de imprimir um ritmo mais forte de trekking, mas eu sabia que estava no meu limite de esforço, e qualquer sobrecarga poderia colocar tudo a perder. E mais uma vez, os meninos souberam lidar muito bem com a frustração: o Lico começou com a seguinte frase: “Mas galera, quais eram os nossos objetivos mesmo?”. Aí o Victão enumerou-os novamente, e chegamos à conclusão de que estávamos muito próximos de atingir todos eles, sem ter que nos acabar fisicamente. Isso fez com que nos acalmássemos e ao mesmo tempo ficássemos felizes com tudo o que estávamos conseguindo. Os quatro quilômetros finais do trekking foram sofridíssimos. Lico e Victão começavam a dar sinais de irritação, e as dores no corpo ficavam cada vez mais evidentes. Eu já estava delirando, vendo pessoas onde só havia pedras – até o Togumi eu vi atrás de uma árvore.

No nosso planejamento, o trecho final de bike seria bem curtinho (12 km), e praticamente sem subidas. Doce ilusão novamente. Ao encontrarmos nosso apoio, descobrimos que eram 26Km, e que teríamos que enfrentar subidas doloridas. Procuramos não entrar em desespero, fizemos a transição brincando com os apoios que estavam ali aguardando as suas equipes e nos jogamos na estrada novamente. O trabalho de equipe novamente foi fundamental, com o Lico me empurrando nos trechos mais íngrimes. Eu estava tão desesperada para chegar que quase me matei numa das descidas: soltei o freio e deixei a bike chegar a mais de 60km, e tive pouco controle para fazer uma curva. A sorte é que não vinha nenhum carro na outra mão, senão este relato aqui seria psicografado. O Lico, novamente, veio para perto de mim e me ajudou a não fazer nenhuma besteira até o pórtico montado em frente ao Hotel Pelicano.

Terminamos a corrida com 33 horas de prova, inteiros e felizes, em 5º lugar no geral e 1º na categoria Master. A sensação da chegada foi indescritível. Me senti como uma guerreira que reencontra a casa após uma batalha longa e bem sucedida, ao lado de parceiros queridos. As cicatrizes vão fazer parte da nossa história, para sempre. Todos os momentos de ansiedade e medo, foram se transformando ao longo da prova em experiência e sentimentos de alegria, paz e na certeza de ter alcançado os objetivos da equipe.

A minha vivência com esses super atletas no EMA Remake comprova que a sintonia da equipe, o acolhimento e respeito aos limites do parceiro é fundamental. Se eu, com a minha pouca experiência e preparo tivesse me aventurado em um ambiente mais agressivo e menos tolerante, tenho certeza que não teria chegado nem na metade do percurso. A determinação e organização do Victão – nos ajudando a manter o ritmo e o foco na prova; com a liderança, alto astral e o coração enorme do Lico – cuidando da equipe com um carinho imenso; foram a mistura perfeita para que fizessem surgir em mim o desejo pela superação por um objetivo maior, coletivo. Obrigada a vocês guerreiros, por me proporcionarem uma experiência tão forte e recompensadora. E que venha o próximo perrengue!!!!

Vanessa Cabral
Psicóloga e Terapeuta Corporal
Desenvolve um trabalho clínico voltado para o desenvolvimento do auto-conhecimento e manejo do estresse em atletas (profissionais ou amadores), crianças e executivos, através da Anatomia Emocional de Stanley Keleman (www.centerpress.com)
Contato: anamitra@anamitra.com.br

Vanessa Cabral
Por Vanessa Cabral
05 Ago 2008 - 09h14 | sudeste |
publicidade
publicidade
publicidade
publicidade
Cadastro
Cadastre seu email e receba as noticias automaticamente no seu email diariamente
Redes Sociais