E lá vamos nós em mais uma aventura! Desta vez, o desafio estava localizado no Sul de Minas, região montanhosa, charmosa, calorosa, maravilhosa... mas que ficou também chuvosa e muuuiiito trabalhosa...
Para enfrentar os 130km, me juntei à equipe AKSA, que resolveu ousar com uma nova formação: três mulheres (eu, Marcinha e Lili) e um homem (Felipe Fuentes).
Acertada a formação, conseguimos fazer um treino antes da prova para nos conhecermos melhor: um trekking de 6 horas e meia. A partir daí já dava para perceber que a prova seria intensa e bem divertida, pois de cara percebemos que o alto astral, o bom humor e a determinação eram características comuns a todos. Porém, Felipe tinha uma grande missão: conduzir três mulheres sem muita experiência em provas acima de 100 km sem surtar! Prometemos a ele que se terminasse a prova sem precisar de camisa de força ou remédios de tarja preta, ele receberia um prêmio!
A hora da largada chegou, o dia estava nublado. Praticamente todas as equipes de ponta estavam lá. Nos abraçamos no pórtico... Felipe nos pediu para que o ajudássemos nos cuidando e nos comunicando com ele durante a prova para que ninguém ultrapassasse o seu limite, quebrasse ou se machucasse. E a prova começou!
A grande maioria dos quartetos se dirigiu para o PC facultativo 1, e de cara pudemos sentir que as Montanhas de Gonçalves eram realmente lindas, mas dariam muito trabalho. Demos graças a Deus por termos trazido os trekking poles (e aí as borboletas viraram gafanhotos), de termos nos cuidado com a hidratação e de termos passado repelente com 10 horas de duração contra carrapatos (preocupações femininas... agüenta Felipe!). Felipe ia controlando o nosso ritmo e fazendo uma navegação perfeita, evitando que nos desgastássemos demais, pois nossa estratégia de não nos dividirmos era arriscada em termos de desgaste físico, porém achamos o mais acertado para que pudéssemos nos conhecer melhor e nos preparássemos para a parte mais complicada da prova: a noite fria e chuvosa que vinha pela frente. Este tempo a mais que passamos juntos foi imprescindível: fomos trocando experiências em provas, em situações de perrengue... Intercalávamos com alguma música ou piada. Marcinha, a mais quietinha da turma, aos poucos foi se soltando, e terminou uma das duras subidas para o PCF05 contando uma ótima piada de loira! Aí, neste momento, a equipe começou a chamá-la de “Martinha”.
Terminamos o trekking cantando “Pescador de ilusões”. Fizemos uma transição tranqüila, felizes por termos seguido as regras do jogo (muitas equipes não subiram para o PC04 com os dois atletas, muito menos levando os equipamentos de segurança) nos reabastecemos, e fomos encontrar o frrrriiioooo.
Mas como toda boa prova de aventura, não foi só a queda de temperatura que tivemos que encarar... Logo no início do pedal, o freio dianteiro da bike do Felipe “escapou” e ele quase beijou os cascalhos de uma descida que estávamos fazendo. Perdemos algum tempo consertando o cabo que estava quase quebrando. O frio aumentou, o dia foi ficando escuro.
Continuamos no caminho, e percebi que meu pedal não estava rendendo em função do peso excessivo na minha mochila. Enquanto pedalava sofrendo, ficava lembrando de tudo que havia colocado nela, tentando ver se havia a possibilidade de aliviar um pouco, mas não via saída: o equipamento para o vertical, fleece, anorak, comida e bebida para enfrentar a noite até que pudéssemos chegar ao saco2 tudo era necessário, infelizmente!
Felipe percebeu rapidamente a minha dificuldade em acompanhá-los e começou então a me rebocar, para que continuássemos todos juntos, sem ninguém desanimar.
E assim fomos por quase metade do trecho que separava o PC06 do PC07. E aí surgiu outro probleminha para animar ainda mais a festa: dois raios da roda traseira do Felipe estouraram, complicando o esquema que estávamos fazendo de reboque.
Novamente este capitão teve uma super presença de espírito e propôs para que a “Martinha” me ajudasse trocando a mochila comigo, para que eu pudesse me recuperar um pouco. Esta pequena grande mulher aceitou prontamente a orientação, e conseguimos voltar a um ritmo melhor de prova. Esta perna de bike se mostrou mais dura do que imaginávamos.
O frio na Pedra de São Domingos era insuportável. Lili e Felipe – definitivamente os atletas mais fortes – foram para o rapel,e eu e Marcinha fomos assinar o PC07 e nos aquecer em uma casinha que ficava embaixo da torre.
Este foi um dos momentos mais marcantes da prova: primeiramente tomamos um “banho de água fria” quando percebemos que 90% das equipes tinham escolhido um caminho diferente do nosso e haviam feito o mesmo trecho cerca de duas horas a menos do que nós.
Depois, começamos a ficar assustadas com o clima dentro daquele pequeno recinto: a imagem lembrava um campo de refugiados – atletas tremendo, enrolados em cobertores, alguns dormindo, outros conversando sobre como a prova estava dura, e de como seria difícil remar com aquele frio. Uma das frases que mais se ouvia era: “Nossa... imagina remar agora a noite mais de 20 km neste frio, nessa chuva...”. A Lili e o Felipe estavam demorando para voltar, e eu e Marcinha, mesmo sem falarmos abertamente uma com a outra, estávamos ficando impressionadas com aquele ambiente. Como se tivéssemos feito um curso avançado de “transmissão de pensamento”, começamos a mexer nas nossas mochilas e a nos preparar para a próxima etapa, sem dar muita atenção ao que estava acontecendo ali. Trocamos de roupa (e aí fiquei feliz em ter roupas quentinhas e secas, fazendo valer o peso carregado!), e comecei a comer as coisas que costumam me animar: de cara saquei um Twix que não demorou um minuto na embalagem, depois comi um Talento, depois complementei com Yummys e, para “fechar os trabalhos” tirei uma coca-cola de 600 ml. Um dos atletas que estava esperando o resgate não se agüentou e sorrindo me disse: “Não acredito!! Nestes últimos minutos você tirou desta mochila tudo o que eu estava desejando! E pra fechar essa coca-cola!!!!”. Após me proporcionar esses “mimos”, me sentia nova e pronta para continuar. Logo em seguida, Felipe e Lili apareceram, fizeram uma transição rápida e nos mandamos do “reduto da desistência”.
Ao pedalar morro abaixo, o vento e o frio diminuíram consideravelmente. Chegamos ao PC08 inteiros e renovados para encarar a parte mais molhada da prova. Fizemos uma batata amassada com azeitonas, queijo parmesão e atum que “deu um axé”!
E aí veio a “provação”... Três mulheres e um moço para carregar dois ducks até o início da canoagem... Já tínhamos mais de 12 horas de prova. Sofremos absurdamente para conseguir chegar ao final desta primeira portagem. Felipe e Lili desenvolveram algumas técnicas para transporte, mas a força física aparecia como um limitante, tornando este trecho dolorido e muitas vezes desesperador.
Neste momento, a equipe conseguiu ter paciência e canalizar a raiva que estava brotando em função da lentidão da nossa progressão e dos inúmeros tombos que estávamos tomando na tentativa de carregar aqueles barcos. Em momento algum ouvi de nenhum dos atletas palavras que demonstrassem alguma vontade de desistir da prova – o que tínhamos ali era um belo quadro de raiva coletiva (Júlio, xingamos muito você!!!!).
Quando conseguimos começar a remar, parte da tensão diminuiu, mas o rio muito recortado e raso, nos ofereceu outros momentos de tensão. Quase perdemos um dos remos em uma outra portagem, e Felipe mais uma vez teve o reflexo rápido e a atitude certa para recuperar o belezão que já ia embora pela corredeira: pulou de cima da árvore que estávamos transpondo para dentro do duck onde a Marcinha já estava, e os dois conseguiram resgatar o remo fujão! Respiramos fundo novamente e continuamos o nosso “caminho da fé”.
Chegamos ao PC09 já pela manhã, todos ensopados e morrendo de frio.
Fizemos um transição mais lenta e cuidadosa, tirando as peças de roupa molhadas e colocando mais roupas secas. Enquanto as mulheres faziam essa troca, Felipão sentava do lado do forno a lenha para se aquecer. Tomamos o chocolate quente, comemos e reorganizamos nossas mochilas para os trechos finais.
Saímos para o trekking com um complicado objetivo: terminar a prova antes das 14 horas. Felipe arriscou em trilhas alternativas e fizemos um trekking bem mais rápido. Usamos o que restava das nossas energias, chegando ao PC10 bem perto de algumas equipes, o que nos animou novamente.
O trecho final da bike foi extremamente dolorido. As subidas intermináveis e o sol que resolveu sair justamente quando precisávamos de um ar mais fresquinho vieram querer nos derrubar, mas novamente a equipe transformou o cansaço e a dificuldade em energia para acabar a prova antes do término oficial – 14 horas.
A transição também foi rápida, tiramos os lixos, reabastecemos as caramanholas e partimos para pegar a equipe que estava na nossa frente.
A motivação não era de um ou outro atleta – ela nascia da equipe, estávamos determinados e “com sangue nos olhos”. Mesmo com mais de 24 horas de prova, ainda conversávamos bastante, para que nosso ritmo não diminuísse.
Nas descidas, um alertava o outro para que tomasse cuidado, para evitar qualquer tipo de acidente. E assim fomos os 13 km finais. Não conseguimos alcançar a PaBuff, mas conseguimos terminar a prova às 13:20!
Cansados, mas ainda vivos, comemoramos como verdadeiros guerreiros. Todos estavam felizes e agradecidos por terem tido a oportunidade de fazer parte daquela equipe.
Ao longo das 27horas de prova, foi possível construir vínculos de amizade e confiança entre nós. Apesar dos momentos críticos, onde a irritação acabava nos tomando, conseguimos colocar a preocupação com o “cuidar” acima de qualquer coisa. E foi isso que fez a diferença.
Agradeço a esses atletas por tudo o que vivi e aprendi:
Marcinha – “Martina”: você surpreendeu! Se mostrou guerreira e companheira o tempo todo.
Lili – Mulher forte, alegre e determinada! Sua força e alto-astral contagiam quem estiver por perto!
Felipe – Você é uma jóia rara... Não imaginava que pudesse ser possível encontrar um atleta de aventura tão completo: você navega muito bem, é alegre e compartilha as informações com o resto da equipe (baixando absurdamente o nível de ansiedade de quem não sabe ao certo quanto falta para chegar...); é preocupado e companheiro (não deixou que nenhuma de nós ficasse para trás em momento algum!). Uma perfeita e raríssima combinação dos tipos constitucionais meso e endo (assim como o querido Lico).
E com isso, chego ao fim de mais um looooongo relato. Com a certeza de que os verdadeiros corredores de aventura têm em seu sangue o desejo de compartilhar batalhas com outros guerreiros que tenham objetivos comuns, respeito mútuo, valores e ética que os guiem através da competição.
Burlar regras (recebendo ajuda externa ou não cumprindo as orientações dadas pela organização no briefing) pelo simples prazer de chegar na frente está fora da filosofia destes atletas, e se reflete na maneira como essas pessoas se posicionam perante a sociedade nos diferentes papéis que desempenham: como profissional, membro de uma família, amigo, namorado, eleitor, etc.
É por isso que considero este esporte um “laboratório da vida”. Em menos de um dia de prova, a corrida de aventura tira máscaras, mostra a nossa essência. E quando os encontros entre os guerreiros é realmente verdadeiro, a motivação e o sucesso da equipe são maiores do que a força de suas almas sozinhas.
Daí vem o nome AKSA (alma em sânscrito), equipe que ajudei a fundar em 2005, cujo nome não foi escolhido à toa. João Bali, obrigada pela oportunidade.
Namastê,
Vanessa Cabral
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