Numa noite típica de São Paulo, mesmo com uma garoa fina e gelada, além do frio, a sensação era de que eu estava embaixo do pórtico de largada de uma prova qualquer, esperando pela contagem regressiva. Na realidade, estava mesmo era numa padaria, tomando um café à espera do Togumi para tocarmos o interfone de um certo condomínio, no Itaim Bibi, em São Paulo. Apesar de não correr há quase uma década – verdade! o Togumi já correu aventura -, tenho certeza de que meu parceiro daquela aventura estava tão apreensivo quanto eu.
Talvez os motivos dele não fossem os mesmos, mas acredito que as expectativas eram semelhantes às minhas. Afinal, não sabíamos o que aconteceria depois que tocássemos a campainha para nosso encontro marcado com Alexandre Freitas, chamado por muitos como o ‘Pai’ das corridas de aventura no Brasil.
Meu primeiro contato com Alexandre aconteceu num EMA Escola, em 2001, também num dia frio e chuvoso, no sítio Canoar, em Juquitiba. Na ocasião, como a equipe EMA Brasil estava se preparando para o Raid Gauloises, que aconteceria no ano seguinte no Vietnã, tive a oportunidade de receber dicas não só do próprio fundador do esporte no país, como também de boa parte da equipe que estaria naquela aventura, como Zé Pupo, Shubi e Nora, e ainda de outros, como o Lucas (Chauás), tido como braço direito do Alexandre naquele tempo. Entre um ‘pedala assim’ e ‘a bússola se usa de tal maneira’, ficava atenta aos comentários sobre os preparativos para a prova que fariam. Numa ilustração modesta, a sensação era como se estivesse numa aula de vôlei com o próprio Bernardinho e toda a seleção brasileira a caminho de uma importante final. O Alexandre, com porte atlético, dividia as tarefas do curso, sempre supervisionando e participando na prática cada modalidade, comprovando a fama de líder nato que já tinha.
Meses depois, na EMA Series, em Paranapiacaba, voltei a me encontrar com aquele que tinha se tornado para mim um ícone do esporte, tanto como incentivador máximo da modalidade, mas também como competidor. Naquela etapa, após uma queda fenomenal da bicicleta, recebi apoio imediato da organização que passava pelo local e entre eles, estava o próprio Alexandre, que, além de sempre percorrer os percursos por onde suas provas passavam, acompanhava incondicionalmente todas as etapas durante cada realização.
Apesar da roda dianteira torta, ouvi do Alexandre que deveria continuar. Segui o conselho e, ao final, mesmo no corte da prova, provocado pela minha lerdeza cheia de dores, completamos. Na chegada, nos cruzamos de novo e ele soltou mais uma: “Eu não falei que dava para completar!?!”
Todas estas experiências passaram em segundos pela minha cabeça, no fim de 2007, quando eu chegava para assistir a cerimônia de premiação da Associação Paulista de Corrida de Aventura (APCA). Enquanto eu entregava a chave para o manobrista, notei que estavam montando uma cadeira de rodas, recém tirada do carro ao lado. Senti um turbilhão de emoções quando vi alguns enfermeiros acomodando o próprio Alexandre na cadeira, em que também estava acoplada uma espécie de tubo de oxigênio.
O porte atlético não existia mais. No lugar, pele e osso de uma pessoa com pouquíssimos movimentos, com dificuldade para enxergar e, mesmo assim, tinha disposição para entregar todos os troféus daquela noite. Eu sabia, como a maioria dos presentes, que a causa fora provocada por um parasita endêmico, que se alojara no tronco da medula dele, após participação no Eco Challenge das Ilhas Fiji, em 2002. Também tinha consciência que, apesar de estar naquelas condições, Alexandre Freitas já tinha progredido e muito no seu processo de recuperação. Desde o incidente, acompanhei pela Internet todas as notícias sobre esta evolução. Mesmo com o coração apertado, eu sabia que ele já tinha estado em coma; que acordara do coma movimentando apenas os olhos; que perdera a visão após negligência médica no Brasil; que chegara a pesar menos de 50 quilos; mas que também passara a se dedicar intensamente à recuperação. Em um de seus textos, ele falava que, mesmo após um longo dia de atividades de fisioterapia e fonoaudiologia, ainda acordava no meio da noite e continuava sozinho os exercícios.
Me apeguei a um ponto desse mesmo texto para nosso recente encontro, provocado por conta das comemorações dos dez anos das corridas de aventura no Brasil. Na coluna ele falava que seu maior tesouro estava preservado: a sua consciência.
Era por volta das 20 horas, quando um enfermeiro abriu a porta e pediu para que entrássemos. Enquanto nos sentamos no sofá, vimos na sala ao lado, na mesma cadeira de rodas que me chamara atenção há quase um ano, o Alexandre escrevendo. Ele estava praticando algum exercício, acompanhado por uma terapeuta ocupacional. Apesar do esforço dela em tentar corrigi-lo no exercício que realizava, com dificuldade na fala, ele ordena: “Chega! Prefiro o Togumi!”.
É evidente que ele não tinha a mínima idéia de quem eu era tão quanto nossa expectativa com relação ao encontro estava certa. Por trás da aparente fragilidade física, estava o mesmo Alexandre Freitas visionário, empresário de sucesso, líder por natureza, racional a ponto de até ser tido por alguns como arrogante e ainda apaixonado pelas corridas de aventura.
Recordações
Depois de apertos de mão frágeis, por conta das limitações musculares provocadas pelos problemas pós-Fiji, uma série de lembranças vieram à tona. Entre elas, a primeira participação do brasileiro em corridas de aventura, em 1997, na Southern Traverse, na Nova Zelândia. Após o convite de um funcionário seu, ele montou e patrocinou a Síntese, equipe de mesmo nome do banco de investimentos que comandava na época, sendo formada por ele, um amigo americano, dois funcionários e pela esposa de um deles.
De lá para a criação da Sociedade Brasileira de Corrida de Aventura (SBCA) foi um pulo. Apoiado pela família e amigos, ponto que ele faz questão de reforçar, conseguiu a autorização do Parque Estadual da Serra do Mar para a realização da primeira Expedição Mata Atlântica, a EMA 98. Como a entidade ambiental havia limitado o número de participantes, Alexandre foi obrigado a criar uma nova formação das equipes. Os times seriam compostos por trios, que remariam em canoas canadenses, confeccionadas especialmente para a etapa. Com a estrutura já pronta, não seria fácil convencer qualquer desconhecido para uma expedição de 220 km, em meio à Mata Atlântica, a serem percorridos em três dias e três noites. Para ajudar na divulgação, Alexandre convidou e patrocinou algumas equipes internacionais e chamou alguns amigos para o desafio. 33 equipes participaram do evento.
Ao todo, o fundador das corridas de aventura brasileiras promoveu quatro edições da Expedição Mata Atlântica (Litoral Norte de São Paulo, Petar, Paraty/Ubatuba e Amazônia), intercaladas com provas de menor porte (EMA Series) e outras de médio porte (Mini-EMA). Embora tenha participado ativamente de cada prova, organizando e percorrendo todos os percursos, Alexandre contou que a sua preferida foi a de Paraty/Ubatuba, que para ele foi a mais bonita de todas as etapas. Já a EMA Amazônia, da qual se recorda de experiências com índios que serviram de guias e de percorrer todo o trecho de canoagem com o companheiro de remadas da época, Betinho, Alexandre a classifica como a mais completa das EMAs. Não só pelo aumento do número de participantes, que chegou a 47 equipes em 2001, mas também por ser a prova que para ele atingiu o formato ideal do esporte: quatro integrantes, sem equipe de apoio e, claro, com muita navegação.
Alexandre relembra que fez todo o percurso antes da prova levando seus equipamentos e um telefone via-satélite, utilizado diariamente para conversar com a esposa, que perguntava aonde ele se encontrava naquele dia.
Já como atleta, das provas que participou, a que mais gostou foi a do Vietnã. Além do clima quente, Alexandre acha que a prova foi também a mais divertida. Talvez por estar com aqueles que considera até hoje seus melhores companheiros de prova: Zé Pupo e Karina Bacha. No bate-papo, auxiliado por um de seus cinco enfermeiros, Alexandre fez questão de reforçar que, embora não resida mais no Brasil, a amiga Karina sempre telefona para saber como ele está, assim como os demais parceiros no Eco Challenge Fiji: a canoísta Carmen Silva, Eduardo Coelho e Zé Pupo.
Opinião
No decorrer do nosso encontro, além de acabar nos acostumando a interpretar o que falava, deu para perceber que, definitivamente, Alexandre Freitas ainda é o mesmo. Como bom analista financeiro que é, Alexandre acredita que, com a melhora da economia do país e, conseqüentemente, do poder aquisitivo da população, as corridas de aventura devem sofrer uma explosão. Basicamente, ele resume, tudo é uma questão de dinheiro, seja para a preparação dos atletas ou para a realização das competições.
Certo ou não, ele avalia que a melhor saída para o crescimento das corridas de aventura está na busca de patrocínios privados e não tanto governamentais, devendo ser seguido o caminho de esportes como vôlei e basquete. Sem medir palavras, ele exemplificou a questão comparando as provas do Sudeste com as dos demais estados, dizendo que as provas fora de São Paulo não estão crescendo como deveriam por falta de recursos. “Não tem prova importante fora de São Paulo porque não tem dinheiro. Tanto que a Oskalunga só vem pra cá”.
Afiado, Alexandre aproveitou para opinar também sobre as provas paulistas, a começar pela Adventure Camp, a que considera estar no caminho certo. Além de se preocupar com a exposição dos patrocinadores, da organização do evento e da divulgação, Alexandre também acha importante a realização de clínicas para iniciantes e o envolvimento de crianças e adolescentes no esporte. Apesar de também sentir falta de navegação nas provas da Adventure Camp, Alexandre parece realmente apostar no trabalho do organizador Sérgio Zolino, a quem confiou a realização do EMA Remake, em julho último. Na opinião dele, Zolino, além de se dedicar exclusivamente ao esporte, acertou mais uma vez quando, recentemente, resolveu vender parte da Adventure Camp a um novo sócio já experiente no ramo de eventos esportivos, como forma de alavancar novos recursos.
Em relação à Brasil Wild, Alexandre resume como uma prova legal, porém não é a única fonte de renda de Julio Pieroni, o que para ele pode ser entendido não como prioridade para o organizador. O Ecomotion, Alexandre também classifica como no caminho certo quando o assunto é divulgação. A extrema preocupação com o marketing do evento, segundo o organizador da EMA, é a principal forma de se conseguir patrocínio. Quanto à Chauás, comentou apenas que é mais uma prova.
Alexandre Freitas parece realmente atento ao mundo das corridas de aventura. Tanto que falou inclusive das provas internacionais, comparando o Raid Gauloises ao Eco Challenge. Para ele, a primeira, por ser mais organizada, é a melhor prova. Já a segunda se voltava excessivamente para o apelo de marketing. Mesmo considerando que o Eco Challenge não faz falta para o mercado de aventura, ele revela ter ouvido boatos de que esta etapa voltará acontecer.
Ao ser questionado sobre o Ranking Brasileiro de Corridas de Aventura – RBCA –, Alexandre simplesmente levantou as duas mãos em sinal de positivo e disse: “é legal e esse formato está certo”.
Exemplo de vida
Acordar às 7h30, pedalar, andar, fazer musculação, ir pra cama depois das 23h, e pedalar na praia todo fim de semana até pareceria a rotina de um aspirante à corredor de aventura, se não estivéssemos ouvindo do próprio Alexandre.
Felizmente, ele continua fazendo o que mais gosta, pedalando pelo menos duas horas por dia, no Parque do Ibirapuera. Na maratona de treinamento tem ainda caminhadas duas vezes na semana, com 1,5 hora cada; musculação na academia e no prédio onde mora; e quatro sessões semanais de terapia ocupacional, que auxilia na retomada da coordenação e controle dos movimentos. Tudo acompanhado por três enfermeiros durante o dia e outros dois à noite. Apenas a canoagem foi suspensa, por precaução, devido ao risco envolvido, já que ainda depende de aparelho para respirar. Quando não está se exercitando, Alexandre aproveita para curtir os dois filhos, que o visitam todas as noites.
Apesar da rotina extenuante em busca da recuperação, Alexandre diz que, com exceção de Fiji, faria tudo de novo. Diante de uma situação como esta, acabo me censurando, quando lembro da minha reação quando o revi na entrada daquela festa em 2007. Infelizmente, na maioria das vezes, temos um pré-conceito das pessoas ou das situações, mas no caso do Alexandre, pude compreender que qualquer sentimento de pena ou esboço de lamentação deveria dar lugar a uma percepção de orgulho e exemplo máximo de perseverança e vontade de viver.
É evidente que a fatalidade ocorrida em Fiji deixou seqüelas, mas, sem saber, mais uma vez ele me ensinou que, quando queremos, conseguimos seguir em frente e buscar nossos objetivos. O dele, por enquanto é voltar a enxergar e continuar se recuperando fisicamente para, quem sabe, se envolver novamente com as corridas de aventura. Alexandre comentou que, como gosta de fazer os percursos das provas, a ausência da visão é hoje o maior impedimento para que retome suas atividades no esporte. No entanto, em outubro, no mesmo mês que o país comemora os 10 anos de corridas de aventura, ele viaja para os Estados Unidos, onde passará por um transplante de córnea artificial. Mais uma vez Alexandre Freitas mostra sua força de vontade e persistência. Os organizadores de aventura que se cuidem!
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