Fim de mais um mundial de corridas de aventura, Ecomotion Pró 2008. Considerada uma das provas mais duras do Planeta, reuniu neste ano as melhores equipes do mundo. Foram 60 participantes, dos quais 32 eram estrangeiros e 28 times brasileiros.
Tive o privilégio de participar indiretamente, auxiliando a equipe Selva na sua preparação psicológica. Mesmo não tendo conseguido ainda conversar com os super atletas (que vão desfrutar agora de um merecido descanso), gostaria de compartilhar com vocês hoje, a primeira parte do estudo que estou fazendo a partir desta riquíssima vivência. Vou falar um pouco sobre a filosofia que existe por trás da linha de trabalho desenvolvida: a Clínica Formativa de Stanley Keleman.
A idéia é traçar um paralelo entre o mito do Herói Parsifal e a evolução dos atletas ao longo dos atendimentos que antecederam a competição.
O Caminho do Herói – A Lenda de Parsifal
Desde que comecei a estudar mais profundamente as questões existenciais e motivacionais (individuais e do grupo) que atraíam pessoas para as corridas de aventura - se submetendo a horas intermináveis de desafios físicos e mentais - venho me deparando com perfis de atletas que resgatam o caminho do Herói. Parsifal, filho de um cavaleiro andante de nome Gahmuret; morto em combate na Terra Santa em batalhas servindo o califa de Bagdá; herda as habilidades guerreiras do pai e, ao ter o seu primeiro contato com cavaleiros da cúpula do Rei Artur, tem despertado o desejo de ser um deles também. A sua saga evolutiva para se tornar um verdadeiro cavaleiro o coloca na busca do Santo Graal. Sua trajetória mostra como usamos a nós mesmos e nos formamos diante dos desafios da vida.
Apesar de não estamos mais no período medieval, a busca por um significado maior para a existência humana continua sendo uma questão fundamental. Uma questão importante que precisa ser levada em consideração é: estou preparado para enfrentar essa jornada? A palavra “preparado” aqui, tem um significado mais amplo, ela significa não só estar em condições físicas para enfrentar a batalha, mas também ter disponibilidade emocional para vivenciar questionamentos e reflexões que surgem a partir das pedras que surgem no caminho. A evolução e o crescimento somático-emocional é um processo ativo, que é comandado pelo próprio indivíduo, a partir de seus instintos e da crença da existência do Santo Graal. Mas você pode me perguntar: todos os atletas de aventura estão neste estágio, nesta procura? A resposta é: Não, somente uma minoria enxerga o esporte como um caminho para algo maior.
Ao longo dos últimos anos, tenho tido a oportunidade de conviver e observar diferentes atletas e equipes de corrida de aventuras, e a partir dessas vivências identifiquei alguns perfis básicos de competidores, que buscarei resumir abaixo:
1) Marketeiro – dei este nome para esse primeiro grupo, pois reúne pessoas que fazem este tipo de esporte muito mais pela imagem que ela transmite do que realmente pela identificação e vocação. É uma relação superficial, onde a vaidade pessoal é um dos principais fatores de motivação destes competidores, o que os direciona para uma postura individualista que acaba comprometendo a sua capacidade de integração e trabalho em equipe. Dificilmente um Marketeiro consegue ter sucesso neste esporte, ou mesmo entender o por quê de se submeter àquele esforço todo.
2) Ermitão – Grupo de atletas que se identificam inconscientemente com a busca pelo Graal, porém ainda se encontram em um estágio inicial de amadurecimento somático-emocional. Geralmente são grandes corredores, que se sentem tocados por algo mais profundo, mas não conseguem ainda compartilhar a liderança e trabalhar em uma equipe que demande uma postura mais democrática. O Ermitão funciona muito bem em um grupo onde suas decisões e estratégias não são contestadas ou criticadas pelos demais atletas, que se comportam como fiéis seguidores. As duras expedições e provas o deixam com os sentimentos e instintos à flor da pele, porém ele ainda precisa desenvolver e amadurecer sua capacidade de comunicação, além de sentimentos e emoções relacionados à confiança, compaixão e ao compartilhar.
3) Guerreiro - Aqui estão atletas com um nível mais elevado de consciência na relação do esporte com a sua busca pessoal por desenvolvimento e amadurecimento pessoal e espiritual. São atletas que fazem da corrida de aventuras uma jornada coletiva. A preocupação e respeito pelos demais integrantes da equipe são naturais e legítimos, assim como a sua capacidade de abrir mão de objetivos individuais por um bem maior e coletivo. Equipes de guerreiros dificilmente desistem dos desafios, e crescem com eles. A liderança é compartilhada e conquistada através de sentimentos de admiração, respeito e confiança.
Os Guerreiros da Selva
A equipe Selva sempre havia chamado a minha atenção por sua postura low profile (sem estrelismos ou atitudes individualistas), pelo alto astral e companheirismo que eles transmitiam em imagens e entrevistas e pelos resultados consistentes que estavam tendo ao longo de 2007 e 2008.
Desde o primeiro contato com Marcinho, capitão da equipe, foi possível perceber que eles estavam buscando algo mais profundo do que simplesmente a performance no Ecomotion Pró 2008. Em termos de condicionamento físico, não havia dúvida de que todos estavam fazendo a lição de casa, com treinos programados, sessões de fisioterapia preventiva, etc. Ele acreditava que para o Pró, era preciso um trabalho voltado para o desenvolvimento da capacidade de comunicação entre os membros da equipe, o que indiretamente, melhoraria não só a performance deles, mas também ajudaria a resgatar a essência da Selva: voltar a fazer as provas de forma leve, curtindo – pois acreditava que isso havia se perdido nas últimas competições.
As reuniões que fizemos tinham como principal objetivo aprofundar sentimentos e emoções dos atletas, para criar vínculos mais fortes entre eles e outros elementos motivadores.
Assim como a Lenda de Parsifal, era necessário ajudar esses cavaleiros a encontrar o caminho para o Graal. No imaginário medieval, o cavalo representa o dinamismo da natureza. O cavaleiro representa o controle do cavalo. O caminho evolutivo leva a uma integração entre o indivíduo e o mundo que o cerca. Os primeiros passos estão relacionados com a capacidade de se re-conhecer, de encarar seus instintos e necessidades.
É interessante notar que, durante a jornada, Parsifal sempre deixa as rédeas soltas no pescoço do cavalo, que o conduz a castelos e encontros que agregam novos conhecimentos (artes e manobras do comportamento de um cavaleiro, as destrezas do combate) e despertam sentimentos que desencadeiam a sua transformação e amadurecimento. Temos aí o que Keleman denomina de “corpo social formado”.
Desde o início do trabalho, percebi que o histórico da equipe Selva e de cada um dos integrantes era rico em experiências profundas. Muitos castelos já haviam sido visitados por eles, e todas as batalhas tinham uma narrativa repleta de sentimentos e níveis de consciência que facilitaram muito o meu papel como mediadora.
Como o tempo era curto e precisávamos criar experiências que provocassem uma maior integração, procurei ajudá-los a resgatar e compartilhar suas histórias de vida. De onde estavam vindo? Como o esporte havia entrado na vida de cada um? Quais eram seus objetivos? Era necessário despir a armadura dos cavaleiros e permitir que um olhasse para o outro a partir de uma lente mais humanizada, mais mortal. Era necessário mostrar que a equipe o espírito competitivo deveria ser utilizado fora do grupo, e não entre eles.
Nas primeiras sessões tratamos de assuntos que, geralmente, os guerreiros evitam: falar das suas fraquezas, medos e inseguranças. Para uma corrida como o Ecomotion Pró, era preciso que cada membro da Selva reconhecesse as formas corporais e emocionais que surgem em momentos de extremo cansaço e estresse psicológico para que, automaticamente, o grupo se auto-regulasse e que um fosse capaz de ajudar o outro e, o mais importante, de saber pedir ajuda. Este movimento evitaria que a desarmonia se instalasse na equipe e resultasse em queda de ritmo e discussões desnecessárias.
Os guerreiros não só deixaram as armas de lado, mas também abriram seus corações. Ao compartilharem momentos vividos na infância e adolescência, os atletas resignificaram suas trajetórias, construindo um caminho único que os levaria ao mundial. Histórias emocionantes foram compartilhadas, e cada um teve a oportunidade de entender e ser entendido e acolhido pelos demais.
Aos poucos, o grupo foi percebendo que os temas discutidos e experimentados nos encontros foi sendo trazido para o dia-a-dia deles. A comunicação entre eles passou a ser permeada por novas palavras e expressões, e com este novo vocabulário, surgiu também uma nova postura corporal da equipe, mais tolerante, mais unida e acolhedora.
Marcinho, Caco, João e Rose passaram a se relacionar de maneira diferente. Para a competição, eles sabiam que precisariam funcionar como um só corpo. Tanto os objetivos traçados pela equipe quanto as metas individuais de cada atleta mostravam uma preocupação com o coletivo. Era preciso então dar uma forma a este novo corpo que havia sido criado, onde as fortalezas de cada um precisariam ser combinadas para dar conta dos pontos fracos de cada atleta. Foi então que, em nosso penúltimo encontro, a equipe “deu a luz” ao CREUZO – um boneco de argila que trazia em cada uma das suas partes um pedaço dos atletas, que se fundia com os demais para uma nova identidade.
Durante o processo de criação do CREUZO, os guerreiros iam atribuindo qualidades e super poderes. Os pontos fracos foram discutidos no final, com o objetivo de localizá-los corporalmente e definir ações necessárias para que essas fraquezas não o derrubassem em combate.
A partir desta atividade, foi possível também identificar quais contribuições e papéis de cada membro da equipe. Responsabilidades foram atribuídas, aumentando ainda mais a consciência e coesão do grupo.
Foi interessante perceber que, na medida em que a equipe conseguiu aumentar o nível de entrosamento, problemas físicos que antes os atrapalhavam deixaram de existir. Treinos longos, que costumavam ser sofridos e, muitas vezes entediantes, passaram a acontecer de maneira leve, e divertida.
Uma camada endodérmica começou a ser criada no grupo predominantemente mesodérmico, trazendo sentimentos de empatia e compaixão para a consciência da equipe, que partiu para o mundial em pleno processo evolutivo. O CREUZO iria dar os seus primeiros passos nas areias e cascalhos do Sertão Nordestino.
Mesmo vivenciando um contratempo que comprometeu o resultado final da equipe – um peixe estragado comido na véspera do mundial atingiu duramente dois integrantes no primeiro dia de prova, levando a Selva a passar pelo PC03 em 59ª posição (penúltimo lugar) – a força, a união e motivação dos atletas os fizeram percorrer os 550Km em uma prova de recuperação e superação, terminando em 23ª posição.
Nesta jornada, os Guerreiros Selva tiveram a oportunidade de desenvolver ainda mais a maturidade da equipe. As adversidades enfrentadas os levaram a um renascimento, a reconstruírem a si mesmos, partindo do chão para um ponto maior através do exercício da empatia, da identificação com as fraquezas dos outros e da expansão do enorme coração que já possuíam.
E aqui voltamos novamente à lenda de Parsifal: sua jornada mítica mostra “(...) que somos parte de um processo vivo maior do que nossa pequena personalidade (...)” (Keleman, S. 2001, p87). Nosso crescimento verdadeiro nos joga além dos limites sociais, é preciso formar uma visão, uma experiência que traga uma verdade emocional e biológica.
Compaixão significa “sofrer com”, ser capaz de agir em busca do resgate do outro, mesmo que isso comprometa a sua vida. É doação por um bem maior. Este é o verdadeiro espírito do Guerreiro. É ser capaz de transcender o mundo de polaridades criado pela sociedade: bem X mal, certo X errado, bom X ruim, assertividade X ternura, homem que luta X homem compassivo.
O resultado da prova mostra que vocês tiveram a oportunidade de colocar em prática tudo o que havia sido discutido nas sessões em grupo. A união e comprometimento da equipe os levou à SUPERAÇÃO. Vocês conseguiram extrapolar os limites da competição e transformar cada quilômetro percorrido em experiências que vão marcá-los para o resto da vida. Este é o verdadeiro significado da busca do Graal. Tenho certeza que vocês deram um grande passo no caminho evolutivo de cada um e da equipe. Dificilmente vocês serão os mesmos depois de uma experiência como essa, assim como me sinto transformada também. Sinto-me privilegiada por estar tendo a oportunidade de trabalhar com pessoas tão nobres.
Queridos Guerreiros, Marcinho, Caco, João e Rose, tenho certeza que vocês encontraram o Rei do Graal e foram convidados a entrar no castelo. Devem ter feito uma linda festa por lá, não?! Ele também nunca mais será o mesmo!
Parabéns pela incrível jornada, e espero ansiosa pelas histórias desta saga.
Namastê
Vanessa Cabral
Psicóloga e Terapeuta Corporal
anamitra@anamitra.com.br
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