7...8...9..nocaute...
Foi assim que me senti... Nocauteado após a canoagem de 67km no rio Waiamakiriri.
Mas também, quem foi que me mandou botar a cara à tapa pro Mike Tyson do Multisport...
Da primeira vez que corri o Coast to Coast, em 2006, fiquei surpreso com a beleza do percurso, a especificidade técnica das modalidades e a dureza da prova.
Acho que minha memória seletiva me fez lembrar a montanha, o rio, as pedras e as corredeiras, mas fez questão de não me lembrar a surra ...
O Campeonato Mundial de Multisport é uma prova longa, um dia longo, o dia mais longo ou Longest Day, como dizem os neozelandeses. Eu digo que é como uma disputa pelo cinturão mundial de boxe, do peso-pesado...
São 8 rounds: uma corrida de 3k, um pedal de 55k, um corridão de montanha com 33k, um pedal 15k, uma pequena corrida de 1k, canoagem de 67k, ultima corridinha 1k e se ainda estiver de pé o ultimo assalto é um pedal de 70k sem vácuo e muita porrada na cara do vento!
Pelo menos dessa vez eu cai só no 6° round...
Tive um inicio de prova excelente e até a metade do dia tudo correu dentro do planejado.
Às 5:00 da manhã uma procissão se inicia. 200 pugilistas emergem das barracas, campervans, pousadas e hospedarias para uma marcha silenciosa até a linha de largada na areia da praia. É tudo silencioso e a escuridão é total, mas dentro das cabeças de cada um de nós, orações, revisões, motivações, convicções.
Eu agradeci.
Antes até de largar, me senti gratificado por estar ali. Busquei coragem para a luta que estava por vir, lembrei de 2006 quando o multisport começou pra mim...
A água fria do mar da Tasmânia me trouxe de volta segundos antes do tiro de largada e o campo de meditação se transforma num enorme ringue e a luta começa.
Na largada é importante correr os 3 primeiros quilômetros do dia no gás total a fim de pegar a bike junto do primeiro pelotão, já que no primeiro trecho de ciclismo o vácuo é permitido.
Consegui me posicionar bem neste trecho e se formou um grande pelotão de umas 30 bikes. Ali eu estava pedalando num ritmo confortável, mas a ansiedade e preocupação com as fugas me deixava tenso. Às 6:00 da manhã, ainda no escuro, os moradores de Kumara saem a rua para ver o pelotão passar e aquela galera na rua foi inspirador e até aquecia o ar frio naquela manhã.
Quase 2h depois da largada soou o gongo. Fim do 2° round.
Estava muito bem na luta, havia me esquivado de todos os golpes e consegui distribuir alguns jabs que começavam a me deixar confiante.
No corner da transição o Marcio Franco, multisporter brasileiro, fazia meu apoio e depois de pegar a bike e me entregar o tênis e a mochila, me orientou sobre levantar a guarda e, se ver oportunidade, cruzar a direita e soltar um gancho de esquerda no queixo em seguida.
Levantei a cabeça sai para a luta. Uns 10min de corrida na grama e entramos no vale do Decepition River. Daí até o topo no Goat Pass são uns 700m de desnível. Só pedra! Me senti muito bem desde o inicio dessa corrida e aproveitei a primeira hora quando a subida é mais gradual para ganhar algumas posições. O terreno exige uma concentração constante e dá pra acelerar em uns terraços mais estáveis, mas é preciso muita cautela nos trechos sobre as pedras e nas travessias do rio.
Com 1,5h nesse round eu apoiei minha mão numa pedra pela primeira vez. Isso significa que entrei no trecho dos boulders, onde as pedras do rio passam a ser grandes blocos e a inclinação do terreno também cresce. Esse é um ponto de referencia importante porque a partir daqui o bicho pega...
No topo do Goat Pass acertei uma seqüência linda de dar inveja a Muhammad Ali: direto de direita, gancho de esquerda, gancho de direita! KALUNGA BUMAYE!
Passei no topo abaixo de 2h, o que para minha previsão era ótimo! Fechei a guarda para evitar o contra-golpe... desci na boa, muito mais preocupado em não cair do que em acelerar. O inicio da descida despenca de uma vez para o vale do outro lado da montanha e depois de encostar no rio, ainda volta a subir por umas três vezes. Eu sabia que tinha que me poupar para os próximos rounds...
La em baixo encontrei o Marcinho, peguei a bike e o máximo de rango que eu consegui comer antes de entrar no rio. A partir daqui já não é valido pegar o vácuo de outros competidores.
15k depois entreguei minha bike de volta para o apoio na rodovia e corremos juntos por uma estradinha de terra que dá acesso ao rio Waiamaka. Eu já tava quebradinho com 6h de prova, mas lembrar do meu estado nessa estrada em 2006 me fez sentir zerado agora... Naquele ano não conseguia nem caminhar aqui de tanta câimbra... Imagina como eu entrei no caiaque daquela vez...
Agora eu estava confiante e resolvi partir para a luta franca.
Remei com cautela os primeiros quilômetros para perceber como meu corpo reagiria. Era preciso muita atenção à leitura dos canais no inicio do rio e eu remava sozinho. Um canal errado significaria encalhar num raso e ter que carregar o caiaque. Mesmo assim eu não via ninguém e não estava reconhecendo nada daquele trecho do rio. Não encalhei, tampouco acho que remei pelo melhor canal ali...
Com uns 50min de rio depois das primeiras corredeiras conhecidas como Rock Gardens, vi outro canoísta. Ele vinha me ultrapassar e decidi que não ia entregar assim tão fácil aquela posição. Reagi. Alcancei a esteira do caiaque dele e fiquei ali brigando. Com o canoísta, com as ondas e correntes e principalmente com o esforço que eu pedi para o meu corpo fazer. Lembro de ter pensado estar fazendo muita força para durar as próximas 6h do dia...Foi o suficiente...abri a guarda um pouquinho...um pequeno descuido e...POW! Porrada na cara! Knock down. O caiaque entrou num remanso e eu não consegui me defender. Virei. Nadei. Congelei.
A cena se repetiu antes do final deste round. Com o mesmo golpe fui a lona de novo...ou melhor fui pra água de novo. Ventava muito desde o inicio da canoagem e depois desse banho eu nunca mais recuperei meu calor. Nem as posições que eu perdi nadando e recuperando o barco na margem.
O vento e o baixo volume de água fizeram este ano a canoagem mais lenta no Coast to Coast. Para mim pareceu uma eternidade, eu parecia Rocky Balboa, só queria minha “Adrian...Adrian...”
Saí arrasado do rio, fisicamente e psicologicamente quebrado. Meus amigos que estavam ali fizeram mais por mim do Adrian fez por Rocky. Marcinho, Carrijo, a Kika, a Nora e o Ian que me levantaram, me puseram em cima da bike e me deram força durante todo o pedal final. Eles foram incríveis e pararam ao longo da estrada e de tempos em tempos eu recebi uma carga de energia nova ao cruzar com eles.
O round final foi um pedal lindo em direção ao Oceano Pacifico.
E de olho roxo e banguela cheguei à conclusão de que meu maior adversário na luta contra Tyson fui eu mesmo e olhando por esse ponto de vista, ainda que caolho, me vi vencendo!
Ano que vem tem mais e espero compartilhar com mais brasucas lá do outro lado do planeta o Perfect Timing!
Guilherme Pahl
Oskalunga Sundown
Copyright©2000-
Adventuremag - Informativo sobre corrida de aventura - Política de privacidade
Proibida a reprodução, modificação e distribuição, total ou parcial de qualquer conteúdo deste website