Iniciamos a nossa participação no Troféu SP de Corridas de Aventura de forma um pouco confusa. Primeiro, a nossa integrante Bia teve uma gripe na quinta-feira que antecedia a prova e isso gerou uma certa tensão. Com a inscrição feita, nos restava encontrar uma menina para compor a nossa equipe ou estaríamos fora. Já vi esse filme: Brasil Wild Gonçalves em 2008, correndo com a Seiva. Nos inscrevemos em quarteto, iniciamos a corrida em trio (devido à falta da quarta integrante na ultima hora), e terminamos em dupla (devido ao desgaste físico de um dos atletas).
Bom, voltando ao Troféu SP. Perguntamos para mais de 20 meninas e só uma teve a coragem de se propor a nos acompanhar: a Ingrid. Valeu Ingrid!!
Largamos e começamos o nosso desafio: acertar um ritmo que todos da equipe se sentissem confortáveis. Pronto... depois do PC01 isso estava resolvido.
Como todos sabem, nas largadas de corridas de aventura sempre tem uns cachorros vira-lata, meio mulambentos, no mais puro estilo “ônibus de pulga”, curiosíssimos, tentando achar alguém que derrube umas migalhas no chão e vendo o que se passa na cidade, que até então estava tão quieta e em paz. Pois bem, em Ilhabela, cidade litorânea, bem turística, nada seria diferente.
Corremos, andamos, corremos, andamos... subimos, subimos! achamos o PC02. Não sabíamos que este seria o último, antes de entrarmos em algo que me parecia os estúdios e locações das gravações de Holywood.
Uma cachorra preta, ora denominada de “Neguinha”, nos perseguiu na subida ao PC02. Houve até alguém que disse, ali no meio da muvuca, que seria dona daquela cadela. Acreditamos, portanto, que ela estivesse acompanhando a devida equipe. Quando nos deparamos, ela estava junto com a nossa equipe, na trilha, e sua “dona” havia sumido.
No mapa, apenas uma trilha: a correta para o PC03. Sem referências, seguimos em frente e subimos um pouco mais, com a cadela atrás. Por conhecer a região, nosso navegador Rodrigo viu que aquela era a trilha do Baepi, que consta até mesmo dos mapas turísticos e do Guia 4 Rodas (mas não estava no mapa da prova, acho que para dificultar para os atletas). Até que a descoberta foi rápida e prontamente voltamos quase até o PC02, para então darmos uma pequena volta e pegar a trilha supostamente correta. E a cadela atrás. Região de caçadores e muita captação de água em seus inúmeros riozinhos, o local conta com milhaaares de trilhas, mais ou menos paralelas. Altitude ok e direção ok, conferiam com o mapa. Vamunessa! E a cadela atrás. Anda, anda, anda, anda, e naaaaaaada do PC. Seguíamos uma mangueira de captação de água, o que indicava que certamente chegaríamos a um rio. As referências que tínhamos faziam sentido. E a cadela atrás. Masssss... aquela trilha, infelizmente, não nos levava onde pensávamos. Chegamos ao final da mangueira, onde havia um tambor azul, em que a água do rio era captada e peneirada antes de fluir pelas mangueiras. E a cadela atrás. Depois que chegamos à cidade, ouvimos até dizer que alí estávamos certos, bastava continuar um pouquinho e chegaríamos no PC03. Mas não era possível ter certeza. A dificuldade e o tempo perdido foram tamanhos, que duvido que não tenhamos entrado em algo paralelo e nos enfiado em uma mata de difícil deslocamento inutilmente. Enfim, não deu certo... nos ferramos! Fiquei chateado, já que há tempos isso não acontecia a ponto de nos fazer desencanar da prova.
Então, acabamos por nos considerar “perdidos” e certamente fora da prova, uma vez que horas se passaram e havia horário de corte. A equipe Guepardos foi a única que sobrou conosco (NAQUELA TRILHA – porque tinha uns 200 perdidos em outras) para dividir a angústia dessa lamentável batalha perdida. Ahhh, a cadela também sobrou conosco, claro. Ela vinha sempre atrás! E era boa de trekking!
Éramos em 8 e mais uma cadela.... Daí é que começamos a ver que aquilo se parecia com aqueles filmecos de Sessão da Tarde, em que há um bando de crianças e um cachorro. Normalmente, o cachorro as leva para um “Grande Segredo”, uma “Montanha Mágica”, um Castelo qualquer, uma Mandala da Sobrevivência que irá salvar a Humanidade... Enfim... aí é que vem o mais legal dessa prova!
Voltar pela mesma trilha seria, claro, muito mais prudente. Não precisávamos nem pensar no caminho, bastava seguir a mangueira e rasgar a mata quando a trilha se fechava ou quando a mangueira passava por pedras altas e locais de acesso impossível para seres maiores que pulgas. Mas pensamos nas horas e na dificuldade que passamos para chegar alí. Punk... Desanimador.... E a cadela atrás!
Como aventureiros de primeira, decidimos então descer por uma ravina, que mais tarde viraria um riacho para que o desnível de 350m fosse rapidamente superado e logo estaríamos na “civilização”, local de casas, ruas, sorveteiros, botecos com cerveja, e cachorros para fazer companhia à nossa inseparável companhia de filmes de aventura do tipo Xuxa e os Doendes.
Descemos até que bem no começo. Pula pedra, desce o rio, escorrega no limo, pula mais pedras, salta os troncos, bate a canela e pronto.... opa! Estamos indo rápido!! E a cadela atrás! Ela nadava no rio, subia bem nas pedras, passava pela margem quando achava uns buraquinhos na mata, voltava pra água, vencia as pequenas corredeiras e quedas d’água. “Ótimo, ela é boa de canyoning também!”
Mas nem tudo são flores. O desnível começou a piorar, as pedras eram cada vez maiores, uns troncos até ajudavam, outros atrapalhavam e o caminho começou a ficar cada vez mais técnico e complicado. E a cadela atrás! Esse era o problema. Pensei: “ela jamais saberia sair dali e se empacasse, seria difícil ajudá-la (grande pacas e pesada!)”. Nós mesmos, nem pensaríamos em voltar atrás. Desceu tá descido, só sobe de volta com corda (ou se tiver uma onça lá em baixo).
Sabe um esquema do tipo Senhor dos Anéis? Pois é. Só faltava escurecer mesmo. Não demorou muito, uma enorme pedra, de uns 2m de altura, fez com que a cadela simplesmente parasse. Nós 8 passamos, mas ela ficou. A Ingrid, nossa guerreira companheira de equipe, com uma certa dificuldade, subiu de volta com a minha ajuda e tentou convencê-la a descer nos meus braços. Nada! A cadela chorava, prendia-se na pedra, deitou e ficou. Depois de muita insistência, conseguimos. Peguei-a no colo e deixei-a na água. Prosseguimos e sempre a cadela vinha atrás!
Mas o caminho ficou ainda mais complexo. Tivemos que fazer várias manobras em equipe para poder salvá-la. Um desempaca a bichinha, outro pega-a no colo, outro passa para outro e assim foi, até colocarmos a cadela em uma pedra segura ou na água, para ela nadar. Como naqueles filminhos, só a cadela poderia saber o “Caminho do Grande Mistério”. Teve até um “escorrega”, em que nossa companheira deslizou pelo limo por uns 10m até “frear” numa pedra. Coitada!
Ao atravessar um rio com uma enorme cachoeira, o Pedro (Guepardos) achou cordas! Eram da organização!!! Outras equipes voltavam por alí do tão procurado PC03!!! Aí rolou uma cena do tipo Indiana Jones: a cadelinha atravessou um riacho pela correnteza, enquanto os mestres Rodrigo e André vinham por uma ponte criada pela queda de um enorme tronco, que parecia ter sido colocado ali propositalmente (mas certamente não foi). Fiquei admirando, praticamente vendo os dois artistas caírem dali. Ao pensar em uma produção, vi que aquilo tinha de ser feito por dublês.
Conversamos com eles e concluímos que o PC estaria a 10min SUBINDO por ali. A Guepardos subiu, para pegar o PC. Nós, ao contrário, descemos pelas cordas, já que a Neguinha jamaaaaais demonstrou vontade alguma de passar por algo mais complexo do que aquilo que vinha passando para buscar o raio de um PC! Aquela situação tinha que acabar e logo. Ela já estava cansada PACAS, MUITO tensa, machucada, com dores, irritada e com fome (o Chris tinha dado um sandubinha de atum pra ela, mas isso tinha sido há horas). Fora que cada vez que fazíamos as manobras de transposição de obstáculos impossíveis para um cão ela ficava mais nervosa.
Alí, em 4 pessoas mais uma cadela, tínhamos que passar sentados por uma fenda entre pedras, apoiando as costas em uma pedra e os pés na outra, com uma fenda cheia de água em baixo. A cadela não poderia passar, claro. Naquela fenda profunda machucaria as patas. Rodrigo e Ingrid deram um jeito de atravessar aquilo com ela no colo. Contar é fácil, mas foi duro! Eu mesmo tentei o malabarismo de ajudá-los. Não consegui.
A cachorra deve ter pensado: o que eu vim fazer aqui com essa gente esquisita?!! Deve ter se sentido abduzida, coitada. Passou por uma experiência incrível! Claro que nós também não estávamos muito confortáveis: fora da prova, cansados, com fome de coisas diferentes de géis e fedendo cachorro molhado (ela nadou pacas no rio, lembra que eu falei lá em cima??).
Quando finalmente chegamos onde havia civilização e trilhas mais abertas, foi um alívio. Nos dirigimos à cidade, encontramos a Guepardos e falamos sobre tudo aquilo. O filmeco de Sessão da Tarde estava pronto! Só faltava a pipoca. Escrevendo esse texto, estou até sentindo o cheiro, algo que vem da mente. Isso porque o final do filme também foi característico: Chegamos à arena da prova, todos ficaram emocionados quando contamos o que acontecera e como trouxemos a coitada durante as mais de 7 horas de caminhada por esses lugares. Para completar o filme, sabe, quando escreve F-I-M, vem as àltimas informações sobre que fim levou a personagem principal, em letras manuscritas, que vão aparecendo bem devagar, bem emocionante mesmo:
“Ao final desta grande aventura, o atleta Christian Guariglia, líder de uma equipe com nome de felino, a Guepardos, resolveu adotar Neguinha e trazê-la para São Paulo, onde até os dias de hoje vive feliz em seu novo lar”
Quero agradecer a todos que participaram comigo desses momentos que renderiam uma sessãozinha de vídeo-cassete, em dia de chuva na praia para crianças de 12 anos: Rodrigo Alfaia, Andre Petroff, Ingrid, Pedro Vianna, Chris Guariglia, Livia, Marco Rossini. Não pela corrida de aventura, claro, que esta foi inacabada e nem termos o que contar das demais modalidades que estavam por vir (bike, verticais e canoagem). Mas pela espetacular aventura vivida na mata de Ilhabela. Alí pudemos ver que nem sempre estamos certos ao pensar que foi “tempo perdido” desistir de uma corrida (na maioria das vezes é hehehe... mas dessa vez não). Também nem sempre temos noção do que é “difícil” numa corrida. Aquela cadela nos ensinou que pode ser pior, mas que podemos vencer o desafio em prol de algo mais urgente. Jamais ficaríamos com a consciência tranquila se tivéssemos deixado-a ali para se virar (apesar de que pela força dela e instinto, eu acho que ela daria um jeito, mas nós jamais saberíamos). Me surpreendi como ela se virou bem, achei que teríamos que carregá-la mais vezes. Além de tudo foi uma diversão fantástica. Posso ficar 10 anos sem assistir uma filmeco na Globo, que terei histórias pra contar.
Andre Stefanini
Equipe E. C. Pinheiros Selva
Copyright©2000-
Adventuremag - Informativo sobre corrida de aventura - Política de privacidade
Proibida a reprodução, modificação e distribuição, total ou parcial de qualquer conteúdo deste website