Punta Arenas (Chile), 14 de fevereiro de 2012.
Carla Goulart, Felipe Fuentes, Fernando Nazário e eu participávamos do Patagonia Expedition Race, uma das provas de aventura mais duras do mundo, com o total de 565 km. Fizemos a transição de uma perna de pouco menos de 70 km de mountain bike para entrar em uma seção de canoagem em caiaques oceânicos, que teria distância total de 84 km.
Havíamos alugado as saias da organização. As "saias" são equipamentos utilizados em canoagem, e servem para vedar os cockpits dos caiaques, pois em mares agitados, é comum entrar água. Porém precisam ser de neoprene. Um dia antes da prova, fomos a última equipe a retirar os materiais alugados com a organização, e não haviam sobrado saias de neoprene para nós. Sobraram apenas quatro saias de nylon. Assim começou o problema.
Nas primeiras duas horas estava tudo bem, apenas o Fernando passava muito mal por causa da ondulação do mar, e vomitava muito. Eu remava sozinho (ele estava no caiaque comigo), mas mesmo assim tínhamos uma boa progressão, pois seguíamos uma boa corrente.
De repente o mar mudou, ficou muito agitado (comum na Patagônia) e as ondas cobriam os caiaques. Progressivamente, a água passava através das saias, enchendo os cockpits, o que tornava os caiaques muitos instáveis, quase virando o tempo inteiro.
Primeiro procedimento: utilizamos as bombas para a sucção de água (equipamento obrigatório que usávamos), mas era inútil. A cada litro retirado, cinco litros entravam. Estávamos com água até o peito, na temperatura de 4 graus. Mesmo com os Dry Suits que usávamos, estávamos com muito frio, e a costa mais próxima estava a aproximadamente 7 km. Se os caiaques virassem seria perigoso, pois com a agitação do mar, se alguém desgrudasse seria difícil nadar e voltar para eles. O mar provavelmente nos arrastaria.
Bom, tínhamos um problema.
Segundo procedimento: pedir ajuda. Abri a case do telefone via satélite, mas não havia sinal. Tentei por bastante tempo, consegui um pequeno "alô" do outro lado da linha, mas perdemos o sinal novamente. O Felipe me avisava a cada onda para que eu levantasse o telefone (ele não é a prova d'água), mas em um momento uma onda maior nos cobriu, e lá se foi nosso telefone. Apagou e não funcionou nunca mais.
Terceiro procedimento: unir os dois caiaques para dar maior estabilidade, e remar para algum lugar. Já estávamos congelando, uma verdadeira luta contra o tempo. Bora remar galera, com alegria e força de vontade.
Enquanto dois seguravam fortemente os caiaques, outros dois remavam, com meia pá de cada lado, estilo canoa havaiana. Fernando estava bastante hipoglicêmico por causa do enjôo, mas mesmo assim ele conseguiu fazer muita força. Revezávamos as funções de remar e segurar os caiaques. Felipe e Carla, sempre positivos e serenos. Consegui remar sozinho durante grande parte do tempo, aproximadamente 5 horas com os caiaques cheios de água, o que era bem desgastante. Além da água, todo nosso equipamento estava nos caiaques, como as 4 mochilas (com 15 quilos em cada uma), barraca, sacos de dormir, etc.
Cantávamos e gritávamos palavras de incentivo para nos manter quentes e acordados. Quando nada mais adiantava e já estávamos muitas horas sem sentir nossas pernas, vimos um jato de água a uns 50 metros adiante. Uma baleia! Então ela nos mostrou o dorso e submergiu novamente, era uma jubarte. E então outro jato. Isso nos alertou muito, na hora certa, pois estávamos muito fracos e sonolentos por cauda da hipotermia.
Conseguimos entrar numa outra corrente que nos empurrava para outra parte da ilha, ajudando bastante a progressão dos caiaques. Por fim, algumas ondas nos arremessou em direção à ilha. Assim que chegamos em terra firme, não consigo me lembrar de mais nada, pois assim que saí do caiaque, caí de cara no chão, e fiquei inconsciente durante duas horas. Segundo os médicos, isso ocorreu por causa do grande esforço físico para arrastar os caiaques, somado à hipotermia grave, de terceiro grau.
Existem os seguintes graus de hipotermia:
Os outros integrantes da equipe tiveram um papel fundamental neste momento. O Felipe encontrou um lugar seguro e me carregou para um bosque abrigado um pouco acima da praia (os ventos são fortes), e seguiram alguns procedimentos para recuperar o meu calor corporal. Todos tiramos as roupas molhadas e entramos em nossos sacos de dormir para nos aquecer.
Acordei sem roupas, dentro do saco de dormir, e tremendo um pouco. Os meninos montaram acampamento, fizeram comida quentinha no fogareiro. Assim que voltei a tremer dentro do saco, todos viram que ia ficar tudo bem, pois havia baixado um estágio da hipotermia. O Fernando me abraçou forte para passar meus tremores e tentar me esquentar, durante uns 20 minutos. Tudo isso realmente ajudou muito.
Após algumas horas fomos resgatados por um navio da marinha, e tudo ficou bem. Fomos pra dentro do navio, chá e comida quente, banho. Tudo isso durou um dia inteiro, e mais alguns dias de transportes para chegarmos de volta ao hotel em Punta Arenas.
Segundo o pessoal da marinha, uma pessoa com roupas normais, sobreviveria à água com esta temperatura somente entre entre 4 e 7 min. Com os dry suits que estavamos usando, só poderíamos sobreviver 15 minutos! Ainda bem que não sabíamos disso antes, pois fomos contra esta teoria, e sobrevivemos por 5 horas com água até o peito. Realmente o ser humano é capaz de feitos inimagináveis. O nosso bom condicionamento físico ajudou muito, mas o que nos salvou foi a cabeça forte e união de todos para um resgate mútuo.
Até o dia de hoje ainda não sinto meus dedos dos pés, mas o médico falou que é normal e nada grave, e devo voltar a sentí-los em algumas semanas ou meses.
A organização reconheceu o erro, nos devolveu o dinheiro do aluguel dos equipamentos, e nos deram a inscrição da edição de 2013. Não culpo a organização erro na logística dos equipamentos (especialmente as saias de neoprene), e reconheço que é uma prova extremamente bem organizada. Porém organizador precisa delegar muitas coisas, onde pode não ter controle de 100% da prova, podendo ocorrer este tipo de falha. A logística é enorme. Mas o Stjepan (organizador) é muito sensato, e uma pessoa muito boa. Continuamos apostando na prova.
Antes, durante e após a prova fizemos grandes amigos no Chile, por todos os lugares que passamos. Um deles, um profundo conhecedor da Patagônia, nos disse que que as baleias são animais extremamente sensíveis, tem um sexto sentido inexplicável, e um sentimento de proteção materna muito grande. Além disso, é um dos animais que mais demonstra empatia com os seres humanos. Ela é rara no lugar que a vimos (próximo à Ilha de Dawson, no Estreito de Magalhães). Ela ainda acredita que ela só apareceu porque sentiu que estávamos em perigo. Pena que só conseguimos ver seu dorso.
Havíamos feito uma preparação de quase 10 meses para esta prova, mas infelizmente não conseguimos cruzar o pórtico. Ano que vem voltaremos lá para terminarmos a prova, a qualquer custo.
Gostaria de agradecer aos meus companheiros de equipe, por serem as pessoas certas no momento certo, e pela força de vontade inabalável. Isso realmente é uma coisa que não conseguirei descrever com palavras. Tudo isso nos aproximou muito.
Como citei no início do relato, tudo isso aconteceu no dia 14 de fevereiro de 2012. O dia do nosso renascimento.
Leo Guerra
Go Crazy
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