Era dia 26 de março de 2011. Eu e o André Siqueira, companheiro da equipe Keep Walking e também jornalista, disputávamos com mais 150 equipes a primeira etapa do Haka Race, em Itupeva-SP. Dia bem quente, muitas subidas, mas vínhamos num bom ritmo, disputando a segunda posição com mais duas ou três duplas. Seria nosso primeiro pódio. Seria, não fosse o André ser acometido por câimbras fortíssimas (acho que não é por acaso corrida de aventura começa com ‘C’, de câimbra). Faltava, ainda, um terço do trajeto e bravamente, entre uma contração e outra das pernas, que insistiam em parar apesar das ordens em contrário, o Siqueira se arrastou até a linha de chegada, enquanto éramos ultrapassados. Ficamos em sexto lugar.
O episódio desnudou o nosso amadorismo. Depois dessa, incorporamos os hábitos de aprontar os equipamentos com dois ou três dias de antecedência – e não na correria da véspera, como já havíamos feito tantas vezes -, caprichar na carga de hidrotônico, ler os mapas com mais atenção e utilizar o (santo) curvímetro, essencial no cálculo das distâncias.
Mais importante, passamos a treinar com mais frequência. O Siqueira até então era adepto da, digamos, filosofia Romário, aquela do “pra quê treinar se na hora eu resolvo?”. As câimbras de Itupeva mostraram a ele que, se no futebol essa mentalidade pode até funcionar, na aventura as coisas são diferentes. Passamos a levar o esporte a sério e os resultados apareceram, com um terceiro e um segundo lugar no Troféu São Paulo, já no ano passado. Faltava um pódio no Haka.
Quase um ano depois de Itupeva, alinhados na largada de mais uma prova de abertura do Haka, desta vez em Ribeirão Pires (SP) éramos dois caras com ‘sangue nos zóio’. A atitude tinha mudado: assistimos ao briefing, checamos e rechecamos os equipamentos, fizemos a lição de casa. Meus treinos incluíram corrida (três vezes por semana), duas sessões semanais de musculação - pra garantir a lombar nos intermináveis trechos de remo – e quatro idas ao trabalho semanais de bike, sempre pedalando em ritmo forte. Na última semana, no entanto, parei com tudo. Afinal, por mais paradoxal que possa parecer, treinamentos são como a preparação pra um vestibular: se você não tiver um lastro, construído ao longo de semanas ou até meses de estudo (ou de treino), não será um improviso de véspera que vai resolver as coisas. Para quem se preparou, os dias que antecedem a corrida são pra relaxar. É essa tranquilidade que permite ao competidor chegar ao dia D com foco total na prova.
E lá estávamos na largada do Haka. Para minha sorte, os primeiros quilômetros foram de bike, minha melhor modalidade. Isso seria importante pra garantir que acompanharíamos as equipes de ponta desde os primeiros quilômetros. Colados nesse pelotão, chegamos ao primeiro AT (PC 4), na transição pro trekking. Minha preocupação, então, passou a ser simplesmente acompanhar o Siqueira de longe (com 10 quilômetros por dia na esteira, seu ritmo é forte). Baixei a cabeça e dei o máximo, enquanto ele sumia na minha frente. Para minha tranquilidade, havia uma escadaria nos nossos planos, capaz de nos poupar 500 metros de percurso, mais ou menos. Como escada não é corrida, subimos juntos, e, em alguns minutos, chegamos ao rapel (AT2).
Assinei a planilha e liberei o André pra pegar a trilha que desembocaria nas cinco vias verticais montadas pela organização. Nesse momento notei, surpreso, que apenas duas equipes assinaram a passagem pelo AT antes de nós. E os dois atletas que esperavam seus respectivos colegas de equipe eram mais velhos que nós. Como estamos perto dos 40, isso só poderia significar que os concorrentes eram da Master, e não da Sport Masculina, nossa categoria. “C*, tamos em primeiro!!!!”, pensei alto.
Àquela altura, estávamos mais ou menos com um terço de corrida, momento em que o ímpeto inicial dos atletas costuma dar um lugar a uma, digamos, velocidade de cruzeiro. Mas diante daquela constatação mágica a adrenalina me subiu pros níveis da largada. “André, agiliza esse rapel, p*!!!!!”, comecei a berrar, desesperado, sem conseguir vê-lo na trilha. Levou um tempo até que ele voltasse, ainda de papo com os fiscais de PC e sem fazer ideia da seriedade que nossa colocação exigia. “Corre com isso, meu. Não é hora pra brincadeira”, gritei.
De volta à estrada, e ainda ajeitando os equipamentos enquanto caminhava rápido, fui mais incisivo: “Frita essas pernas, p*. Tamos em primeiro.” Sem que eu dissesse mais nada, baixou a cabeça e começou a correr. Entendera o recado. Mas, dois minutos depois, parou de correr, com um “ai, ai, ai”, que veio junto com um cara de dor nada animadora. “O que foi?”, perguntei ainda correndo. “Câimbra”. Se este relato fosse um filme tipo “Rocky o Lutador”, nesse momento surgiriam imagens embaçadas da prova de Itupeva, o Siqueira se esgoelando de dor na chegada. “Não acredito”, pensei. Mas essa é uma das lições da aventura: conviver com as limitações da equipe. As vitórias, assim como as derrotas, são de responsabilidade do time, não de um atleta.
Mas há outra lição: a de que é preciso gerenciar as situações, tirando o máximo, mesmo com um jogador machucado. Assim sendo, tratei de reduzir o ritmo pra um trekking confortável e forçá-lo a comer algo com sal e se entupir de hidrotônico. Também escolhi, em vez de um terreno plano, as escadarias como caminho de volta, agora pro PC05, onde começaria o remo. Correr, naquelas circunstâncias, era tudo o que eu não queria: só aumentaria as câimbras. Reta final pro PC05 e o cara ainda reclamava, mas bem menos que no início do trekking, o que me animou.
Aceleramos e chegamos à ponte onde os caiaques deveriam estar nos esperando, mas uma aglomeração de equipes indicava que algo não estava nos conformes: o PC de onde sairíamos remando era o mesmo em que as equipes da categoria Pró terminariam seu trecho de caiaque – com essa estratégia, a organização maximiza o uso de recursos, fazendo com que, em vez de 400 caiaques, seja necessária a metade para montar a corrida. Pois os times da Pró ainda não tinham chegado, o que nos faria ficar esperando e perder a preciosa vantagem acumulada àquela altura da corrida. O Léo Barbosa, organizador do circuito, já estava no PC apagando esse incêndio. Mais que depressa, tratou de avisar que os tempos de espera nesse PC seriam devidamente anotados e descontados no final. Tudo nos conformes.
Assim que meu caiaque chegou, mal vi o atleta da Pró saindo. Tratei de remar o mais forte que podia pelo riacho que dava acesso à represa Billings, cruzando com diversos amigos da categoria Pró que vinham em sentido contrário. O caiaque é, afinal, um exercício de paciência. Não há adrenalina que resista aos primeiros dois ou três quilômetros de ritmo lento e cadenciado das remadas. O segredo é baixar a cabeça e se concentrar no movimento. E olha que eram sete quilômetros. Vi, novamente, meu companheiro se tornar um ponto cada vez menor na minha frente – mudar de modalidade deve ter feito bem a ele, já que, apesar de continuar reclamando, ele remava com força a ponto de, depois de algum tempo, eu simplesmente não conseguir mais vê-lo. Na solidão da represa, só me restava torcer pra não perder a posição duramente conquistada. Me concentrei e depois de uma hora e meia, bati no PC06, o último antes da chegada.
Mas uma equipe chegou praticamente junto e, no PC mesmo, iniciamos a derradeira disputa. O Siqueira logo me botou pra correr, já na área urbana de Ribeirão Pires. Engoli um sachê de gel e encaixei o melhor ritmo que podia na corrida. O próprio Siqueira sofria pra correr num ritmo mediano, já que o sol e o cansaço de mais de três horas de prova nos castigavam. A linha férrea deixava praticamente apenas duas opções de rota, onde estavam as passagens de nível. Foi quando meu parceiro deu a cartada final: “Dá pra tentar um rasga-mato no ponto em que um córrego cruza os trilhos: se não der passagem, perdemos; se tiver jeito, cortamos caminho. Vai ou não?”, perguntou. “Vamos pras cabeças!”
Chegamos ao tal terreno e o que havia era um matagal alto e enorme margeando o córrego, com um tremendo desnível. Optamos por seguir um muro ao lado e achamos uma trilha quase invisível no meio daquele capinzeiro. Superado o matagal, pulamos os trilhos e demos de cara com um muro enorme de uns dois metros em outro terreno. O Siqueira logo o escalou e atravessou se equilibrando; eu pulei pra dentro do terreno. Restava o ultimo desafio: escalar de volta o muro na outra ponta do terreno pra sair dali: com os braços de meu colega de equipe servindo de corda de escalada subi. Do outro lado, quase três metros até o chão, e o local de chegada quase à vista, praticamente uma miragem. Como um presidiário em fuga, agarrei com as duas mãos o topo do muro, me estiquei completamente e soltei, aterrissando na calçada – brincadeira, aliás, que rendeu uns belos arranhões na altura do pulso.
Mais uma corrida forte de 100 metros e cruzamos o pórtico de chegada. Em primeiro na categoria Sport Masculina. O pódio, afinal, não era inalcançável.
De minha parte, ficaram algumas lições: (1) Como no futebol, um bom atleta não resolve a partida: espírito de equipe geralmente é mais importante; (2) Os resultados não vêm de primeira; como em qualquer esporte, há uma curva de aprendizado, e é preciso errar muito antes de acertar; (3) Em corrida de aventura, preparo físico é importante, mas estratégia é o diferencial.
Agradeço aos meus dois ex-colegas de equipe, Ricardo Machado e Alessandro Panichi, com quem comecei nesse mundo das corridas de aventura e ao André, que comprou a ideia de buscar o pódio. Ao Léo Barbosa, organizador do Haka, com quem tenho tido a oportunidade de trabalhar como assessor desde 2008, e à Renata, minha querida noiva. Agradecimentos do André: Angelita, Bárbara e Miguel.
Danilo Vivan
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