A caatinga que queima, rasga, machuca, esfola, resseca, maltrata, ensinou uma grande lição de humildade aos aventureiros que resolveram enfrentá-la neste final de semana santo, no Desafio dos Sertões na região de Juazeiro, prova válida também pela final do Campeonato Brasileiro de Corridas de Aventura.
Já havíamos enfrentado este bioma no primeiro Desafio, porém à noite. Desta vez, pela disposição das modalidades, enfrentaríamos um dos ambientes mais hostis à presença humana no pior horário possível, das oito da manha até as oito da noite. Mas, antes da caatinga, a prova foi assim:
Largamos em uma corrida urbana de cinco quilômetros. Eu (Gaia), Naru, Helio e Sabrina, convocada de última hora para substituir nossa Mãe Lôra. Trotezinho leve e despretensioso, chegamos na primeira transição. Naru, o nadador oficial da equipe, entrou no Velho Chico para buscar nossos caiaques. Logo neste primeiro desafio, muita gente subestimou a natureza e não considerou a força da correnteza e teve de ser resgatada.
Remo forte e contra a correnteza, travamos um bom duelo com a Papaventuras e chegamos a encostar na poderosa Lontra, perto da ilha do Rodeador. Chegamos em terceiro na transição para as bikes, juntinho da primeira e segunda colocadas. Transição um pouco demorada, pois no transporte das bikes, alguém apertou meio freio dianteiro que estava sem a roda, o que me rendeu alguns minutos para consertar o estrago.
Saímos para um trecho que aparentemente seria de fácil navegação, porém inúmeros estradões dificultaram nossa vida e chegamos ao asfalto que deveríamos apenas atravessar bastante deslocados para esquerda, uns quatro a cinco km para ser mais preciso. Batemos o PC 27 minutos atrás da segunda colocada e havíamos perdido a terceira posição pra galera do Rio Grande do Sul.
Trecho pesado com muita areia e nossa guerreira que não treinou bike começou a sentir. Naru prontamente pegou o reboque da minha mochila e começou a puxá-la. Pouca coisa antes do PC, minha água acabou e comecei a sentir os efeitos de uma desidratação. Para minha sorte, passou um carro da organização com Leo e Sergio que me deram uma garrafinha de água, o suficiente para que chegasse até o PC ainda lúcido. Tomamos o capote da Kalangos Rodante, mas ao chegarmos na transição, apenas a Lontra já havia partido.
Transição lenta, não consegui comer nada devido a desidratação, porém tomei muito líquido. Aqui começa um capítulo à parte da prova. De cara, o Leo (um dos organizadores da prova) me avisa: este trecho vai separar os homens dos meninos. Era o temível trekking pela caatinga. Mais de 20 km de muita pedra, vegetação cortante e urticante, secura e sol de rachar.
Ainda eram oito da manhã e resolvemos então aproveitar o sol "ameno" para dar um trotezinho. Pegamos a Papaventura, os potiguares e também a segunda colocada, Os Patos. Porém, num vacilo de navegação, tomamos novamente o capote destas três equipes. Voltamos pra bater o PCV que estava na cerca e reiniciamos (mais uma vez), a recuperação.
Nossa Guerreira assumiu a liderança e imprimiu um ritmo alucinante no trekking. Chapadeira experiente que é, ia na frente andando e nós três atrás trotando, parecendo filhotinhos atrás da mamãe pato. O terreno era bastante arenoso, o sol já estava escaldante e a vegetação machucava. Passamos os potiguares e, na chegada ao PC 11, encostamos na Papa.
Tenho que confessar agora uma fraqueza que acredito ter se tornado a chave para nós concluirmos a prova: durante este percurso, pensei comigo (não verbalizei) que se não tivesse água para nos reabastecermos no PC 11, eu não prosseguiria. Para minha alegria, não só havia bastante água, como também Gatorade e Red Bull geladinhos.
Reabastecidos e com o ânimo retomado, partimos pro doze na terceira colocação. Trilha difícil, cheia de bifurcações e muito espinhenta. Walter havia dito que muitos dos caminhos que tomaríamos na caatinga eram trilhas de bode. O problema é que o tal do bode é um bicho baixinho, ou seja, pelo alto o mato está denso e tome-lhe castigar nosso rostos e braços. Com uma navegação segura, achamos o PC 12 sem grandes traumas e para nossa surpresa, Murilo avisou que apenas a Lontra e a dupla dos Brou haviam batido o PC. Ele nos deu água potável e nos indicou uma cisterna para resfriarmos o corpo (valeu Murilão pela atenção).
O sol já estava em seu apogeu e nossos corpos eram tomados por uma moleza impressionante. Bebíamos água, mas a sede não dava trégua. Para atacar o treze, resolvemos cortar um caminho onde economizaríamos uns cinco km. Sem problemas achamos trilha que nos levaria pra cima de uma serra. Aqui começou nossa agonia na navegação. Seguindo pela trilha do mapa, achamos as pegadas da galera que estava à nossa frente. Fomos seguindo elas confiantes e acabamos passando do ponto. Percebemos que o azimute já estava muito errado, mas insistimos no erro durante muito tempo. Subimos quase toda a serra atrás das pegadas até que nosso capitão, num arroubo de insanidade, tira um azimute e resolve varar seis km de caatinga. Nesse momento, a prudência que aprendi correndo com Helio cochichou no meu ouvido: "se vocês fizerem isso, vão morrer de sede durante o caminho, pois se andar na 'trilha' já está difícil, imagina varar a caatinga".
Argumentei com Naru que seria impossível fazer oque ele havia proposto e então ele com muita consciência me perguntou: O que faremos então? A resposta era simples: faremos o que nós sempre ensinamos nas nossas clínicas de navegação, VOLTAR até o ponto que tenhamos certeza de onde estamos. Meio cabisbaixos e achando que estávamos em último, iniciamos a volta e encontramos a dupla da Santa Rita subindo. Eles disseram que a Papa havia retornado ao PC 12 e que eles também fariam a mesma coisa. Disseram também ter subido por uma trilha e que de lá, avistaram o PC bem de longe. Saíram na nossa frente antes de Naru regressar de uma despenhadeiro que tinha subido. Resolvemos então voltar ao PC doze.
Começamos o caminho quando Naru grita que tinha se localizado. Achamos a trilha pedregosa que saia do vale e levava ao topo da serra e, finalmente, ao PC 13. O sol já se ia e com ele, parte da agonia. Porém, para compensar, nossa água tinha acabado e com ela se fora nosso psicológico. Mesmo na trilha certa, pensamos em desistir já que estávamos extremamente debilitados. Foi aí que entrou em cena a experiência de Helio. Ele argumentou que antes de qualquer atitude, era preciso saber em que posição nos encontrávamos e só aí decidir sobre a desistência ou não. Tanto eu quanto Naru já havíamos jogado a toalha e nas nossas cabeças nada mais importava. Queríamos uma única e saborosa coisa: ÁGUA. Para nossa sorte, esta se encontrava no PC treze e também para nossa surpresa, quando lá chegamos fomos saudados pela organização que nos deu uma injeção de adrenalina intravenosa com a notícia: apenas vocês conseguiram sair deste inferno até agora. Bebemos água geladinha e sem demora, partimos pro 14 rumo às bikes. Chegamos neste faltando 15 minutos pro corte. Inteligentemente, assumimos o risco e optamos por tomar o corte e seguir direto pra chegada. Fizemos uma transição bem lenta, nos hidratamos, alimentamos e fomos ajudados por diversos competidores que se encontravam no PC.
Pegamos a bike e iniciamos o caminho meio sonolentos e extremamente cansados. Naru novamente amarrou sua bike à da Sabrina, mas nosso capitão já estava bastante debilitado e era hora de outro assumir a responsa. Peguei o reboque e passei a puxar Sabrina que, com muita habilidade, se livrava dos obstáculos facilmente. Seguíamos tranquilos até a hora que passou um carro da organização e alguém gritou: se liguem que os Patos estão vindo aí. Era só o que faltava, no finalzinho da prova ter que disputar posição com outra equipe. Aumentamos desesperadamente o ritmo e fizemos uma corrente de reboque. Eu puxava Sabrina e era empurrado por Naru, que por sua vez era empurrado por Helio. Seguimos num ritmo alucinante que só fez aumentar quando eu olhei pra trás e, acredito eu já estar delirando, enxerguei umas luzinhas. Pedalamos forte até o limite e quase vomitei de tanto esforço. Porém, faltava pouco e logo chegamos na cidade de Sobradinho. As luzes que vi não eram de equipe alguma, pois a galera da Gantuá que chegou depois de nós só o fez depois de uma hora. Cruzamos a linha de chegada exaustos, sem ânimo até pra comemorar. Recebemos o carinho da organização, demos alguns depoimentos e seguimos direto pro churrascão que Euder estava preparando.
Esta prova nos ensinou diversas lições e nos trouxe também outras tantas reflexões. Enfrentar a caatinga exigiu de nós muito mais que perna, mas também inteligência e respeito a um bioma que castiga o homem há séculos. Valorizar a água, que pra nós quase nunca falta, foi outra coisa que aprendemos, pois pela primeira vez, sentimos na pele o que é viver em uma região onde ela vale mais do que ouro. Realmente não esperávamos vencer o Desafio dos Sertões por conta de uma série de fatores como falta de treino, nível altíssimo dos nossos adversários, equipe diferente com a entrada de Sabrina, mas a entrega de cada um de nós acabou fazendo a diferença e experimentamos a verdadeira essência da palavra EQUIPE.
Agradecemos a toda organização do Desafio dos Sertões pelo carinho que receberam nossa equipe, a todas as equipes que em algum momento da prova nos deram uma força como a dupla da Gantuá, a galera da Papaventura, os Pelaskados, Brunão da Kalangos pela garrafa de água e tantas outras que agora não me recordo. Por fim, agradecemos também à Cristal Global que ajudou a transformar a Makaíra no que ela é hoje, uma EQUIPE e não um bando de cabras doidos. Acho que agora posso descansar de vez, já que venho ensaiando minha aposentadoria desde o último Ecomotion (risos).
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