Às 15:45 lá estava eu, na recepção do Hotel Alpina, ponto de encontro dos atletas The North Face para alinhar para o UTMB. Ao chegar ali a ficha começava a cair. Todos grandes atletas que tanto admiro, reunidos fazendo fotos e conversando, num clima amigável e de descontração. Também estava todo o staff TNF, que tanto nos ajudam ao longo de nossas jornadas.
Saímos caminhando em direção ao pórtico de largada. As ruas repletas de gente, aplaudindo e torcendo. O lindo dia parecia uma encomenda. Todos aqueles fatores construíam uma cena que mais parecia um sonho do que a própria realidade. Passamos para o outro lado da grade e caminhamos para o pórtico, já nos saudando uns aos outros e desejando boas vibrações para uma jornada bastante longa.
Eu estava feliz. Eu olhava para tudo em minha volta e contemplava. A música estava muito animada e eu notava todo mundo se movimentando no ritmo. Acho que éramos todos uma concentração de felicidade e essa energia era notável. Pela primeira vez chorei. Eu não sou muito de chorar nas chegadas ou largadas, apesar da emoção, mas dessa vez senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Eram lágrimas de felicidade e eu só consegui agradecer o fato de estar ali. Eu estava pronta para fazer uma prova incrível e não tem como a gente não se emocionar com isso. O UTMB é uma prova grandiosa.
Os 20 minutos passaram rápidamente e quando notei já estava na contagem regressiva de 10 segundos. Ao começar a movimentar as pernas para correr vi que estava iniciando minha grande jornada, para a qual tanto trabalhei e me empenhei. Eu iniciava o meu momento, na minha introspecção, no meu inconsciente e meu mundo.
Passando pelas ruas a torcida era interminável. O inicio da prova é mais plano e permite que os corredores se posicionem em seus devidos pelotões, sempre aplaudidos por muitos.
Eu já larguei com os bastões dobrados nas mão pois já estou acostumada a correr assim. Eu havia decorado o gráfico e sabia que tinha que subir 9 montanhas ao longo do trajeto. Eu apenas não dei tanta atenção ao fato de que havia de descer essas 9 montanhas…
A primeira subida já nos dava boas vindas ao percurso que nos aguardava. Eu não olhei muito para o meu GPS e por isso não me dei conta de que eu já teria que ter comido. Fui notar isso mais na frente, onde acabei pagando pelo meu erro.
Na primeira descida já notei que minhas pernas sofriam. Era muito cedo para sentir qualquer coisa parecida com cansaço e eu fiquei preocupada. Nesse momento a minha amiga Cyntia Terra, também Brasileira, me passou e falou comigo. Eu estava passando por um mau momento e, duelando com meu físico, cheguei no abastecimento do quilômetro 20. Eu estava devastada. Confesso que fui ao fundo do poço. Eu estava pagando por um grave erro e sabia exatamente que podia ter sido evitado, mas naquele momento não podia me lamentar e tinha que tentar reverter.
Bebi muita coca cola, água, e procurei comer. Fiquei com a barriga estufada e nem conseguia correr. Nessa hora eu estava com a Cyntia, que gentilmente oferecia me acompanhar, mas eu me sentia muito mal de fazê-la esperar. Ela foi realmente um anjo e me deu palavras de conforto. Ela se preocupava com o fato de eu eventualmente abandonar a prova, pois ela sabia o quanto era importante para mim cruzar a linha de chegada. Por pior que eu estivesse, eu dizia que no fundo sabia que ia completar. O meu objetivo era terminar, independente do tempo ou da colocação, e acho que isso também me deu uma paz de espírito enorme naquele momento. Como escrevi na véspera da prova, "Sei que terei momentos bons e momentos ruins, mas ambos passam". Eu resolvi caminhar um pouco e me recuperar, e quando me dei conta já estava correndo novamente. Eu já me sentia bem de novo e sabia que não cometeria mais o mesmo erro.
Foi então que comecei a subida de Contamines, de mais ou menos 20km, que pareciam intermináveis. Anoiteceu e eu via as luzes "láaaaaaaaaa" em cima, num zigue-zague que parecia não ter fim. Eu estava me sentindo bem e isso me deixava confiante.
A parte noturna sempre me encanta porque me faz lembrar os Raids de Aventura, que na verdade é a minha raiz. De noite nossa percepção muda muito e eu curtia muito aquele momento. Apesar do frio nas montanhas, o corpo em movimento evita qualquer sensação de desconforto e faz com que a temperatura fique agradável. Basta dizer que a roupa que larguei foi a mesma que cheguei, sem colocar nem tirar nada.
Outra coisa que me deixava feliz e confiante era o fato de que não estava sofrendo mais com meu problema de visão. Eu via que meu goggle estava sendo eficiente e isso me confortava muito.
Esse trecho todo até chegar em Courmayeur foi mágico. A noite estava linda, com uma lua maravilhosa, e apesar do cansaço já evidente nas pernas, eu me sentia bem. Eu forçava onde podia e estava sempre empenhada em fazer o meu melhor. A prova foi bastante dura até ali, mas Courmayeur tinha um significado grande: era o início do CCC, prova que fiz no ano passado.
Cheguei em Courmayeur as 4:00 da manhã e sabia que me faltavam 100km. Aproveitei para pegar um prato de massa, que comi muito rapidamente para não esfriar e não perder muito tempo. Quando saí do abastecimento notei o quanto meu corpo já estava moído. Eu sabia o que me esperava pela frente e nesse momento me transferi do físico para o mental. Posso até dar uma boa visão de o que é o UTMB, para quem já fez o CCC. É a mesma coisa que começar o CCC já todo "detonado". Saí dali já sabendo o que vinha pela frente. Confesso que não sei se isso é bom ou ruim…
Fiz a primeira subida toda no escuro e quando começou a amanhecer eu fui premiada com o visual mais bonito da prova. Eu corria num trecho com subidas e descidas leves, e na minha esquerda o paredão de rocha nevada começava a ser pintado por um raio de sol rosa. As cores mudavam a cada minuto e a natureza mostrava sua cara mais bonita. Não tem como não se surpreender. Num momento desse qualquer dor desaparece e fica muito evidente o por que de estar ali. Quando me dei conta já estava em Arnuva e tinha diante de mim a montanha mais alta da prova: Gran Col Ferret.
Eu lembrava do ano passado, quando subia essa montanha debaixo de uma forte nevasca, mas que dessa vez estava limpinha e iluminada diante de mim. Era mais uma subida forte e eu via as pessoas lá no topo parecendo pequenos bonequinhos em movimentos lentos. Dessa vez o Gran Col Ferret foi uma montanha completamente diferente. Acho que aí é que mora a beleza da natureza: as coisas nunca são iguais.
Quando cheguei ao topo dessa montanha sabia que teria pela frente a longa descida até Praz de Fort. Uma descida prazerosa como foi ano passado, se tornou bastante dolorida esse ano. Chegar ali com tantos quilômetros nas pernas acaba sendo bem diferente, mas corri tentando esquecer a dor e apreciar o visual ate chegar no abastecimento seguinte.
Entrei e peguei uns pedaços de torta de amora que estavam divinos. É engraçado como o nosso organismo aceita e rejeita certas comidas durante a prova. Às vezes fico surpresa com as coisas que tenho vontade de comer e fico feliz quando tenho fome. Isso me mostra que tudo está funcionando bem.
Saí dali acompanhada de um francês, que acabou se tornando meu parceiro até quase a linha de chegada. Não saímos com o intuito de correr juntos, mas como o ritmo estava muito parecido a gente acabou se ajudando. Não sei o quanto ele achou bom pois ele sempre achava que faltava menos para o fim e, como eu estava com a altimetria na cabeça, acabava tendo que alertar que ainda teríamos subidas e descidas pesadas até o final.
Quando chegamos a Champex Lac, mais um marco para mim: Faltavam 3 montanhas (e que montanhas! Eu lembrava bem delas…). A única coisa que mudou na minha cabeça é que parei de olhar a montanha como apenas uma subida e comecei a enxerga-la como uma subida e uma descida. As 3 montanhas pareciam 6, porque comecei a fragmentar cada subida e cada descida. Quando chegamos no alto da Bovine, pessoas nos incentivavam dizendo que teríamos apenas que descer. Ah se eles soubessem o quanto a descida estava doendo…
Passado Bovine faltavam duas montanhas, ou seja, 4 trechos duríssimos. Eu comecei a fazer a contagem regressiva, pois as 9 montanhas haviam virado 2. Com muito esforço passamos a penúltima montanha, Catogne, e ali sim eu comecei a pensar que faltava pouco. De qualquer forma eu sabia que o “pouco” era um trecho de 20km, onde eu pegaria mais uma montanha. Mal sabia eu que essa seria a mais dura de todas. Eu não conhecia a Tête aux Vents, pois ela havia sido cortada do percurso do CCC do ano passado.
Em Vallorcine, no abastecimento antes de encarar a última montanha, foi a primeira vez que perguntei qual era a minha colocação. As duas senhoras no computador me responderam, sorridentes, “Você é a sexta colocada!” Nesse momento perguntei se essa era uma classificação geral feminina ou da categoria feminina, e elas me respondiam dizendo que era geral. Eu não acreditava no que havia acabado de escutar. Fui regada de felicidade e satisfação. Enchi a minha caramanhola e avisei meu companheiro francês, Andre, que iria sair. Ele saiu comigo rumo ao final.
Eu estava muito cansada e meus músculos doíam muito. Meu quadriceps era a parte do meu corpo que mais doía, mas eu ignorava tudo isso porque sabia que vinha fazendo uma prova excepcional. Às vezes eu me deixava levar por pensamentos de estar cruzando a linha de chagada, comemorando, mas eu logo me dava um tapa de realidade e voltava a concentrar na prova. Eu tinha plena consciência de que a prova só acaba quando cruzamos a linha de chegada, ou seja, nesses 20km muita coisa ainda podia acontecer.
Começamos a subir Tête aux Vents, montanha íngreme e técnica, que não parecia ter fim. Eu repetia internamente que cada passo que eu desse para frente era um passo que eu estava mais próxima de acabar. No meio da montanha o André começou a ficar para trás, mas eu não esperei. Eu não sabia onde estava a sétima colocada e por isso não podia perder nenhum minuto.
Foi aí que veio a surpresa. Escutei um assobio e olhei para trás. Era o André me fazendo um sinal e, quando olhei, a francesa Juliette havia o ultrapassado. Foi a ducha de água fria. Eu não acreditava naquilo e comecei a ter vários pensamentos na cabeça. A minha primeira reação foi pensar que ela iria me passar. Me baseei na lógica e imaginei que, se ela havia conseguido me alcançar, ela estava mais forte que eu. Eu praticamente aceitei que ela iria me passar e me lamentei por não ter forças para lutar. Foi aí que eu me despertei. Se ela estava atrás de mim, por que eu tinha que achar que ela estava mais forte? Nesse momento escutei uma voz dentro de mim que me dizia, "Faça por merecer esse sexto lugar".
Cheguei no topo da subida e estava escuro. Liguei meu headlamp e comecei a correr. Repeti para mim mesma de que só pararia de correr quando cruzasse a linha de chegada. Ali foi a descida mais técnica e foi onde mais tive que acelerar. Eu pensava nas pessoas que estavam torcendo por mim. Todos os amigos, família, todo mundo me mandando energias positivas. Pensava na minha avó que estava em Calaf, grudada no terço, rezando o dia inteiro por mim. Acho que tudo isso me fez crescer e lutar. Eu via luzes atrás de mim e não sabia qual delas era a Juliette. Eu não tinha opção a não ser correr de todas as luzes como se cada uma delas fosse a Juliette. Meu corpo doía muito e eu fazia uma meditação, dizendo para mim mesma que nada estava doendo, e correndo o mais rápido que podia correr. Foi assim que desci, o tempo todo, com a cabeça focada em uma coisa: a meta. As luzes de Chamonix se aproximavam devagar e cada passo para frente era um passo mais próximo da linha de chegada e eu lutava com todas minhas forças.
Quando cheguei ao final da estrada de terra havia um staff me direcionando para a cidade. Eu não acreditava, mas estava chegando. Pessoas espalhadas nas ruas batiam palmas, pois sabiam o quanto era necessário se superar para chegar ali. De repente me vi em frente ao Hotel Alpina e sabia que o pórtico estava apenas algumas ruas daquele ponto.
Foi então que entrei no corredor de grades, onde pessoas batiam palmas e torciam. Foi ali que vi meus amigos brasileiros e argentinos, que gritavam meu nome e estendiam os braços para que eu batesse em suas mãos. Foi tudo muito mágico. Cruzei a linha de chegada em sexto lugar, que no dia seguinte vim a saber que não foi geral feminino, e sim na categoria, então em oitavo lugar geral feminino. Para mim um resultado magnífico e surpreendente, que me enche de felicidade toda vez que penso nele.
Gostaria de fechar esse post com duas mensagens. Primeiro gostaria de agradecer todos que me ajudaram a seguir buscando meus sonhos. Agradeço do fundo do coração a cada um que depositou sua energia para torcer por mim, me fazendo chegar aqui. Gostaria de citar nome a nome, mas são muitíssimas pessoas que gostaria de agradecer e não quero deixar ninguém de fora. Obrigada do fundo do meu coração.
Em segundo lugar gostaria de deixar a mensagem de que nunca devemos deixar de acreditar nos nossos sonhos. Mesmo tendo passado um mau momento na prova, não desisti de lutar e acreditar que poderia completar. Faça com que a vontade de se superar seja sempre maior que a dor, sempre sabendo se respeitar, e nunca esquecendo de ser feliz.
Manu Vilaseca
www.manuvilaseca.com
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