Lembro-me quando fiz minha segunda prova de aventura no ano de 2011, e lá pelas tantas, perdido, encontramos uma equipe. Paramos para dar uma checada nos mapas e discutir em que ponto estávamos, quando o navegador da outra equipe solta "tira um azimute até o PC!". Retruquei na ocasião "Ahn, azimute?? Que diabos é isso??" Querendo dar uma de entendido falei qualquer baboseira que o outro navegador desconsiderou. Depois da prova, ao jogar no Google a palavra azimute, descobri que existia um vasto material sobre técnicas de orientação. A navegação é uma arte que além de exigir feeling é necessário um grande investimento de estudo sobre suas técnicas. Cada região e modalidade requerem técnicas especificas, por exemplo: a navegação de trekking no Brasil, no geral, consiste em seguir a trilha que você deseja usando o azimute e o tempo entre referenciais (rios, encruzilhadas, bifurcações, etc...) para se localizar, uma vez que nossas matas são intransponíveis e quando é possível passar, vale mais a pena seguir pela trilha do que fazer um corte de caminho. Na Patagônia é totalmente diferente.
Em 2013 a Harpya sagrou-se campeã do Circuito Brou Aventuras na categoria duplas, graças ao esforço do Diogo (de Sordi), que conseguiu disputar todas as etapas do campeonato. A premiação era a inscrição para o Desafio Aysén, uma prova na Patagônia chilena, na região de Aysén. Esse ano a prova trazia um atrativo extra, com a abertura da categoria "Quarteto Misto Non Stop", uma ação do organizador da prova para sediar a final do circuito mundial de corrida de aventura (ARWS) em 2017. O organizador gentilmente nos ofereceu a inscrição para a categoria quartetos, apesar da equipe ter isenção apenas para uma dupla. Faustinho (Fausto Silva) e Fabi (Fabiana Duarte) completaram o time. Foram dois meses de preparação – e ansiedade – para organizar todos os equipamentos obrigatórios e a logística da viagem. Entretanto, a vontade de fazer uma prova internacional, e na Patagônia, fez com que todos estivessem muitos envolvidos no processo de preparação, criando um excelente clima no grupo.
Tínhamos acabado de virar a segunda noite de prova e estávamos finalizando uma pernada de mountain biking que já durava mais de 30 horas. As duas equipes que estavam a nossa frente já tinham ganhado um terreno considerável. A equipe Uruguay Ultra Sports / Gymnasio Equilibrio saiu para o trekking assim que chegou, ainda à noite, enquanto a equipe XK Race disfrutava de uma noite de sono na escola que servia de PC Camp da prova. Em todos os PCs Camp (três ao todo) erámos obrigados a pagar duas horas de descanso em cada local. Sendo assim, estabelecemos nossa estratégia para descansar apenas nesses pontos durante a prova.
Chegamos às quatro da manhã, arrumamos as mochilas para o trekking e deitamos onde deu para dormir. Uma hora depois a equipe argentina (XK Race) saiu para o trekking. Acordamos às seis da manhã e lentamente fomos nos recompondo para encarar o terceiro dia de prova. Saímos despreocupados, pois sabíamos que a segunda colocada tinha pelo menos 3 horas de vantagem, ou seja, buscar na força física era inviável. Nessa sessão de trekking teríamos que encontrar dois PCs: um deles localizado no cume do Cerro Huemule, com mais de 1600 msnm; e o segundo situado num conjunto de antenas abaixo do mesmo Cerro. A estrada terminava no meio da subida do Cerro Huemule, todo o caminho era feito rasgando mato. É justamente nesse tipo de terreno que a navegação passa a ser um diferencial.
Essa região da Patagônia chilena tem como característica o bosque de lenga (Nothofagus pumilio), com uma vegetação de árvores alta onde a transposição é possível com certa facilidade. Mas apesar disso, qualquer descuido com o azimute poderia nos levar a um ponto distante daquele desejado. Como eu não tinha nenhum referencial de trilha para seguir, me restava confiar no azimute e usar as curvas de nível para calcular nossa progressão, mantendo o olho no mapa. Chegamos ao cume do Cerro Huemule sem grandes problemas, mas a descida para o outro PC vista de cima do Cerro nos pareceu mais complicada do que imaginávamos.
O cume era um bom referencial e de lá tirei um azimute. Bastava seguir o rumo leste até altitude de 650 msnm e de lá ajustar o azimute para norte, daí sairíamos numa estrada. Logo abaixo do cume já começava uma vegetação alta do bosque de lenga. Seguimos o azimute a todo custo, tomamos todo o cuidado ao contornar as vegetações mais fechadas para que não mudasse muito o rumo, a ponto de cair numa paralela na descida. Conforme perdíamos altitude a vegetação ficava mais fechada, até que lá pela cota de 1000 msnm ela ficou totalmente fechada.
Nunca navego sozinho na equipe. Em alguns trechos o Diogo assumia o papel no meu lugar para que eu pudesse descansar a cabeça, e nos trechos mais complicados envolvíamos toda a equipe. Vinha à frente seguindo o azimute, Diogo logo atrás conferindo a altimetria e Faustinho calculando o tempo gasto na progressão, trabalho em equipe. Cada vez o mato ficava mais fechado e confesso que começava a duvidar se aquilo daria certo.
Nessas horas passa um filme na sua cabeça e naquele momento lembranças de alguns trechos da primeira sessão da prova voltavam para me amedrontar. Muito forte veio a visão ruim do que havíamos passado ao cruzar o canal do fiorde, durante a canoagem inicial, quando eu e o Faustinho emborcamos o caiaque que voou como uma folha de papel devido às fortes rajadas que atingiram mais de 60 km/h (36 nós)... Fomos resgatados pela marinha chilena que tentou nos persuadir a abandonar a prova, com apenas três horas de prova transcorridas. Ainda me lembrava da cara de decepção do Faustinho me vendo negociar a situação com o marinheiro, quando num gesto desesperado joguei o caiaque dentro da água gelada do Pacífico insinuando ao oficial que continuaríamos a qualquer custo na prova. Após autorização por rádio junto à organização e que estava tudo bem, permitiram nosso retorno ao mar, sob o olhar de reprovação do oficial da Marinha chilena.
Esses pensamentos rondavam minha cabeça naquele momento. Será que tinha tomado uma decisão errada ao descer o Cerro? Será que estava jogando aqueles longos dois meses de preparativos por água abaixo naquele pequeno trecho de trekking? Será...? A dúvida e o medo apresentam um caráter ambíguo durante a crise: ao mesmo tempo em que ela pode frear, te parar, deixar em estado de pânico; também pode ser a redenção, servindo de incentivo para manter o foco. Eu só tinha uma coisa a fazer naquele momento, usar o medo a meu favor e confiar totalmente na técnica. O azimute estava correto o tempo todo e estávamos perdendo altitude.
– Cola em mim galera, nesse mato fechado se nos distanciarmos vamos nos perder – gritava tenso ao ver que apenas o Diogo estava próximo.
– Qual é a altitude Diogo? – perguntei tenso, outra vez.
– 700 Pedrão, mais um pouco e viramos o rumo, vai dar certo – respondeu Diogo, calmo como sempre e tentando me tranquilizar, percebendo minha ansiedade.
Quando bateu a cota de 650 msnm mudamos o rumo e em menos de quinze minutos batemos no exato ponto onde a estrada começava no mapa. Perfeito! Confesso que senti um frio na barriga naquela hora. Deu certo! E o mais interessante era que não tinha nenhuma pegada na estrada, ou seja, se as outras equipes bateram o PC, fizeram por outro caminho. Descemos rápido e pegamos o PC antena, de lá tínhamos uma visão 360 graus do horizonte.
Analisando o mapa, e confiante pela navegação que tínhamos feito, percebi que ainda tínhamos a chance de fazer outro corte de caminho, economizando uns cinco quilômetros de estrada. Outro azimute, muitas cercas puladas e conectamos a estrada bem à frente. Uma empolgação tomou conta de todos e sem perceber estávamos trotando pela estrada voltando ao PC camp, onde encontraríamos nossas bicicletas.
Ao chegarmos à transição não podíamos crer, tínhamos ultrapassado a equipe XK Race. O espírito competitivo voltou à equipe. Durante o restante do percurso fizemos um esforço além dos nossos limites, e conseguimos manter a posição conquistada naquele trekking até seu fim. Finalizamos a prova em 87 horas, dormindo apenas cinco e felizes com nosso resultado e trabalho de equipe.
Sempre assistimos aos noticiários de esportes – aqui no Brasil – escutamos os comentaristas de futebol dizendo: "fulano está voltando aos treinos e está treinando os fundamentos"; "esse jogador é muito bom, na base sempre treinava os fundamentos depois do treino". Os fundamentos de qualquer esporte são velocidade, força, resistência e as técnicas específicas. Qualquer treinador tem noção disso, variando a forma como emprega esses treinamentos no seu método.
Uma boa técnica de mountain biking é essencial para ser econômico, como uma boa técnica de descida na corrida é fundamental para ganhar tempo, o mesmo se aplica na canoagem, onde uma boa técnica – da remada, como descer as corredeiras, fazer o downwind – é fundamental (se fossemos mais técnicos na canoagem, não teríamos passado o susto no início da prova). Acontece que a orientação cada vez mais vem sendo exigida como modalidade e o domínio de suas técnicas é uma parte importante da preparação. Navegação, sobretudo, é técnica e estudo, mas só aprendemos ou entendemos sua importância quando somos testados em situações como essa na montanha.
Eu agradeço hoje por ter começado a competir em provas mais técnicas, onde se exige muito da navegação, são duras, assim aprende-se na marra a navegar. Por outro lado, fico triste também em ver que cada vez mais os organizadores estão sendo obrigados a diminuir suas provas, deixá-las mais rápidas para atrair atletas, sem os quais não pode cobrir seus custos. Uma vez que transformar-se em aventureiro ficou bem mais acessível nas provas de trail running, não adianta, corredor de aventura tem que ter no mínimo duas qualidades básicas: saber sofrer e ter técnica, pois numa roubada como essa, é o que te ajuda a sair dela!
Para finalizar, queria dizer que o Desafio Aysen foi uma prova sensacional, muito bem organizada, que testou nossos limites de várias formas. Nossos vizinhos chilenos deram uma verdadeira aula de como fazer mapas e organizar provas. Queria agradecer a todos do staff da prova, a equipe de mídia e os organizadores por nos proporcionar momentos que ficarão perpetuados em nossa memória.
Queria registrar um agradecimento especial à galera da BMS (Guilherme e Camila), galera da Brou Aventuras (Zé Elias e Brouzão) e Pablo (Bucciarelli) que além de nos emprestar vários equipamentos, tiraram dúvidas e nos ajudaram a planejar nossa prova. Mas, o maior agradecimento vai para a Diogo, Faustinho e Fabi, pelo espírito de equipe que fez a diferença nessa prova. Valeu Harpya!
Copyright©2000-
Adventuremag - Informativo sobre corrida de aventura - Política de privacidade
Proibida a reprodução, modificação e distribuição, total ou parcial de qualquer conteúdo deste website