Os dias que antecederam esta prova foram muito diferentes. Deitada na cama do hotel, assistindo televisão, escutava as batidas do meu coração. Era como se a cada batida eu fosse lembrada de que algo não estava em sua normalidade. Minha cabeça, por consequência, começava a viajar. Pensamentos surgiam em todas as direções, ora positivos, ora negativos. Embora eu me policiasse a pensar coisas boas, um fantasma rondava a minha imaginação. Eu haveria feito muito? Rapidamente listava as viagens em 2014. Eu estava no mês 6. Olhava para minhas mãos e começava a contar com os dedos: Aconcagua, Perú, Patagonia, Japão, Costa Rica, Itália.
A decisão de fazer ou não uma prova é muito difícil. É muito mais simples não largar, pois eu sei que se eu começar, vou ter que terminar. Não vou mentir em dizer que não tive medo. Tive medo de não conseguir acabar. Cheguei a rebobinar a fita em minha cabeça. Por que eu não havia desistido de vir? Pagaria uma multa pela passagem, mas poderia usá-la em outra ocasião. Por que eu não havia levado isso em consideração quando estava no Brasil, e por que agora estava questionando tudo isso? Me levantei da cama e fui até o banheiro. Lavei o rosto com água fria e me olhei no espelho. Me encarei nos olhos, lá no fundo, e pensei para mim mesma, "Você consegue."
Às 23:00 do dia 27 de junho, lá estava eu, alinhada para largar na Lavaredo Ultra Trail, prova de 119km que percorre a região das montanhas Dolomitas, na Itália. Era a minha segunda vez neste lugar, mas preciso afirmar que foi tudo completamente novo para mim. No momento que comecei a correr, uma espécie de mágica aconteceu. Todo aquele medo, aquela insegurança e aquela grande dúvida, sumiu. Naquele momento eu tive a certeza de que iria conseguir e que estava ali para fazer o que mais gosto de fazer.
Talvez eu esteja um pouco filosófica demais, mas a cada corrida eu descubro algo novo e sempre gosto de compartilhar. Encontro respostas para coisas que busco. A corrida de montanha me traz liberdade. Me sinto muito privilegiada e tenho certeza de que se não fosse por ela, jamais teria vivido tudo que vivi. É como se eu já tivesse vivido o dobro da idade que tenho. São duas vidas em uma e os aprendizados que vêm com isso são inúmeros. Minha experiência nas Dolomitas este ano não foi diferente.
Saí num ritmo muito tranquilo, pois sabia que já pegaria uma subida logo no início. Existia uma palavra com letras maiúsculas em minha cabeça: RESPEITO. Lembrei da minha prática de yoga e trouxe um importante mandamento para primeiro plano: AHIMSA. O respeito começava comigo mesma e durante esses 119km eu respeitaria os limites do meu corpo, que mesmo debilitado, estava concordando em fazer tudo isso. Foi como se eu tivesse passado por um portal, e assim começou a minha jornada.
Em parte eu conhecia o percurso. A primeira subida, que eu recordava ser longa e dura, passou bastante rápido. Quando cheguei ao topo, corria por um caminho que parecia suavemente plano, e que eu lembrava bem do ano anterior. Talvez esse tenha sido o único trecho, em todo o percurso, que no ano passado foi melhor do que neste ano. Eu lembro que havia passado ali com a luz do dia e lembro exatamente da imagem imponente das montanhas naquela pequena estrada, e que nesse ano sumiam com a escuridão intensa da noite. Entrei no single track e comecei a descer com muita atenção. Eu tinha feito um entorse duas semanas antes da prova e não podia arriscar torcer outra vez, por isso o RESPEITO estava sempre em primeiro lugar.
Ao chegar ali peguei um trecho plano, e no final cheguei no primeiro ponto de abastecimento. Encontrei a Giulia, que estava fazendo o apoio da Diane, mas que rapidamente se prontificou a me ajudar. Me abasteci de líquidos, peguei uma banana e saí. Eu estava muito feliz e positiva. Deste ponto em diante peguei uma descida e logo comecei a subir novamente. Eu recordava bem desta parte do ano anterior, apesar da escuridão, e achava que o primeiro trecho havia passado muito rápido. Esse era o maior sinal de que eu estava mentalmente muito bem.
A noite passou como num piscar de olhos e quando o céu estava começando a clarear eu já estava saindo do Lago Misurina, subindo ao Tre Cime di Lavaredo. O lago, como no ano passado, marcou a prova com sua incrível beleza. Havia um silêncio absoluto e a água estava paralisada, duplicando o cenário com um efeito de espelho. Não parecia real e era impossível não desfrutar o espetáculo que a natureza nos proporcionava. Eu havia acabado de ultrapassar duas corredoras e dois corredores e subia o mais forte que podia. Eu queria forçar muito mais, mas os meus batimentos disparavam e não permitiam, então eu me mantinha sempre no limite possível. O cenário mudava e eu ficava cada vez mais boquiaberta. Todo este trecho era novidade para mim e o que posso dizer é que foi uma das coisas mais belas que já vi em toda minha vida. A paisagem era tão perfeita que fazia parecer com que eu estivesse sonhando. Nada parecia real e eu tinha medo de acordar e ver que foi tudo um sonho.
A subida era íngreme, porém mais rápida. De vez em quando eu olhava para trás e me deparava com aquele incrível vale. Eu olhava para cima e o imponente Tre Cime rasgava o céu azul do amanhecer. No meio de tudo isso estava o refúgio Auronzo, quilômetro 48 da prova, onde estavam as “drop bags”. Eu estava eufórica. Era como se a felicidade fosse líquida e eu havia me banhado nela. Eu não podia estar em melhor lugar e eu tinha a certeza que o cenário diante de mim era um privilégio absoluto. Eu me sentia livre e em paz. Eu tive a certeza, que independente da minha condição física naquele dia, era exatamente ali onde eu queria estar.
Logo que cheguei lá em cima fui recepcionada outra vez pela Giulia, que junto com a Guenda agilizaram meu abastecimento. Peguei as coisas que tinha que pegar e empurrei metade do meu sanduíche para dentro. Meu amigo João Marinho estava ali e eu falava com ele, tentando apressá-lo para que saíssemos juntos. Botei a mochila nas costas e disse que estava pronta, mas ele me disse que eu fosse e que logo ele sairia. Ao sair do Refúgio Auronzo entrei mais uma vez naquele cenário de sonho.
A luz mudava a cada segundo e o visual era espetacular em seus 360 graus. Eu corria por uma estrada em descida, que logo virou subida. Paredes de neve foram abertas para que passássemos e ao atingir a cota máxima da prova eu tinha a sensação de que poderia tocar o Tre Cime, de tão vivo e tridimensional. Minha mente registrou um momento inesquecível e eu espero guarda-lo para sempre. Meu sentimento era de gratidão.
Depois disso segui descendo por uma longa estrada. Foi uma descida que durou um tempão e 100% dela era incrível. O cenário mudava, mas eu sempre via algo lindo e surpreendente. Encontrei com uma corredora da TNF Africa do Sul e seguimos juntas. Do topo víamos um vale gigante, por onde descíamos num zig zag técnico, até chegar na parte mais baixa, onde um rio caudaloso corria ao nosso lado. Até a cor do rio era irreal! Era uma cor pastel, uma mistura de azul claro com branco. Eu não parava de admirar.
A corredora parou para ajustar algo em sua mochila e eu segui sozinha. Cheguei num trecho plano, que margeava o lago Landro, de cor esmeralda, e avistei alguns corredores. Ali seguíamos por uma parte que parecia plana, mas que era levemente inclinada. As retas era enormes e era possível avistar corredores até o fim delas. Nesse momento saquei o meu ipod, que raramente uso, mas que me fez relaxar nesse trecho que era fisicamente fácil, porém mentalmente difícil.
Assim cheguei em mais um abastecimento, onde vi a Giulia mais uma vez. Eu ainda estava com a mochila cheia e não abasteci com muita coisa, mas ela me alertou que no próximo eu não saísse sem abastecer. Apenas comi e segui correndo rumo aos próximos quilômetros de prova. Segui no plano e ao cruzar a estrada de asfalto começou uma subida muito dura. Eu também lembrava deste trecho do ano anterior e sabia que o que vinha pela frente não era nada fácil.
Era uma estrada um pouco mais larga, mas cheia de pedras soltas, que ficava íngreme em vários trechos. Passei por algumas cachoeiras e o tempo todo escutava o barulho de água. Subi por ali praticamente sozinha. Havia um corredor lá na frente e um lá atrás, que eu avistava apenas quando o campo visual abria um pouco mais. Quando cheguei ao topo, mais uma vez o cenário mudou. A estrada ficou um pouco plana e eu cruzava um pasto verde, com vaquinhas deitadas e uma montanha do meu lado direito.
Entrei no single track e comecei a descer por dentro de um bosque muito verde, onde a trilha fazia um zig zag mata a dentro. Era uma descida deliciosa e quando me dei conta já conseguia ver o próximo ponto de abastecimento embaixo, no Refúgio Malga Ra Stua.
Cheguei, peguei água e procurei comer um pouco antes de sair. Eu já estava com 75km de prova e nesse ponto já fica mais difícil de comer. As torradas estavam todas com geléia ou nutella e eu não queria nada doce, e por sorte encontrei uma que estava sem nada. Agarrei e saí comendo e correndo.
O trecho seguinte começava com descida por um single track, alternando com estrada e cruzando rios. A temperatura estava perfeita para correr. A vegetação era tão verde que parecia de mentira. Depois o cenário mudou completamente e quando percebi estava subindo novamente. Eu cruzava umas geleiras e voltava ao single track. Tudo isso acontecia por dentro de um vale e ao olhar lá para baixo estava o rio outra vez. As paredes rochosas complementavam o visual.
Cheguei de volta numa planície onde a vista parecia ainda mais surreal. O chão era de pedras, muitas pedras, e um rio corria sinuoso. Eu percebi que deveria cruzá-lo várias vezes então não pensei muito e enfiei o pé na água. Era água de degelo, que anestesiaram meus pés, tornozelos e panturrilhas. Eu olhava para aquele vale gigante e via algumas pessoas em miniatura lá no fundo. Do meu lado esquerdo uma imensa rocha por onde caía uma cachoeira. Eu seguia sem acreditar que tudo aquilo era real.
Quando alcancei os corredores, vi que eram da prova curta, Cortina. Chegamos juntos a uma casinha com água, onde eles ficaram e eu saí. Perguntei sobre o ponto de abastecimento e me informaram que estava 6km adiante.
Logo depois disso comecei a encarar subidas mais severas. Apesar de estar super motivada mentalmente, o meu físico mostrava sinais de cansaço extremo. Eu queria forçar nas subidas mas o meu batimento disparava e eu hiperventilava. Eu me sentia triste por saber que estava indo num ritmo muito abaixo do meu ritmo, mas eu lembrava que meu corpo estava concordando em fazer a prova mesmo sem estar em condições, e eu apenas aceitava e respeitava esse ritmo mais lento. Segui assim até o abastecimento seguinte, quilômetro 96, que era bastante grande.
Ao chegar lá vi a Giulia, que me recepcionou com um sorriso gigante. Perguntei sobre meus amigos da The North Face e tive a feliz notícia de que o Mike Foote havia ficado em segundo lugar e que a Rory Bosio havia levado o título. Eu ainda tinha bastante água na mochila então apenas peguei comida e saí. Faltava pouco, mas ainda faltava muito.
Após uma breve descida comecei a encarar subidas novamente. Com o físico muito cansado eu era obrigada a reduzir o ritmo consideravelmente. Eu subia por single tracks rochosos, cruzava geleiras que estavam derretendo e nunca deixava de contemplar a vista.
Foi um sobe e desce interminável e eu sempre administrando a minha sensação de esforço, pensando que eu já havia percorrido a maior parte do percurso e que faltava cada vez menos. Assim cheguei no início de uma descida, onde eu já podia avistar o Paso Giau.
Havia caminho tipo uma escadaria, onde cada degrau era repleto de pedras, e eu buscava descer pela grana lateral para ganhar agilidade. O cenário era realmente de tirar o fôlego.
Cheguei no último abastecimento onde me informaram que bastava apenas descer. Eu não acreditava, pois realmente começava ter a nítida sensação de que estava acabando. Eu me divertia nas descidas pelas geleiras, onde volta e meia tomava um tombo. Era quase como descer esquiando! Porém a informação de que era apenas descida não estava correta e voltei a encarar subidas. Isso foi um tiro na cabeça, pois ela estava condicionada a descer e não subir.
Eu repetia para mim mesma, "Cada passo para frente significa um passo mais próximo da chegada." Eu me movia sempre para frente e me mantinha focada na meta. Ainda encarei algumas subidas bem íngremes até que cheguei num monto onde avistei Cortina d’Ampezzo lá embaixo. Lembro que havia uma corredora parada neste ponto e eu falei para ela, rindo, "Is that really Cortina d’Ampezzo!?" Ela ria de volta e dizia que sim com a cabeça. Eu estava em êxtase!
Segui correndo pela descida, feliz da vida, já imaginando que a minha jornada chegava ao fim. Passei pelo último refúgio da prova, Croda da Lago, peguei duas batatinhas cozidas e segui descendo, beirando um lindo lago.
Nesse ponto conheci o Nicholas, que estava correndo a prova mais curta, e que trabalha na TNF Europa. Descemos juntos e isso fez tudo passar ainda mais rápido. A descida estava muito molhada e isso a tornou muito técnica, já que havia muitas raízes e trecho íngremes. Foi aí que chegamos no asfalto e eu percebi que a chegada estava mais perto que nunca. Identifiquei a rua por onde corria e vi que estava na reta final, a ponto de concluir os 119km da Lavaredo Ultra Trail. Dei as mãos ao Nicholas e cruzamos a meta juntos, comemorando muito o feito.
Minha conclusão sobre a prova é que percorri um dos mais, senão o mais, bonito percurso de Ultra Trail que já fiz. Foram literalmente 119km de beleza e eu não tenho o que tirar nem por (aos meus amigos brasileiros que fizeram a prova no ano passado, o percurso cortado não chega perto do percurso original). Infelizmente o meu físico não estava em condições de competir como eu gostaria, mas fico feliz de ter conseguido concluir, e ainda sim na oitava colocação feminina. Foi uma prova de superação, de força interior e de muita raça.
Quem não sente dor? Quem não chora? Quem não cai? Quem não sofre? Para quem quer fazer esse esporte, é necessário saber sentir tudo isso e ainda sentir prazer. É necessário ter motivação e além de tudo, paixão. Cada um tem que saber o motivo pelo qual corre e entender que tudo na vida é uma questão de escolha. Eu escolhi estar ali e não tenho dúvida de que fiz a minha melhor opção. Nenhum desconforto foi maior do que a minha satisfação e a glória de cruzar a linha de chegada, depois de me embriagar num cenário de pura beleza. Agradeço ter visto com meus próprios olhos esse lindo espetáculo da natureza.
Obrigada, Dolomitas.
Manu Vilaseca
manuvilaseca.com
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