"Meu pai considerava uma caminhada nas montanhas como uma ida à igreja." (Aldous Huxley)
Eu tinha acabado de deixar o Brou, o Dino e a Marianinha no aeroporto de Mendoza após sermos vice-campeões da XK Traverse Las Leñas, corrida de aventuras de 350km envolvendo seções de trekking de alta montanha, canoagem em um rio de águas alucinadamente geladas e rápidas e um mountain bike passando pelo lindíssimo Valle Hermoso. Tinha, portanto, o corpo cansado mas a mente estava totalmente imersa no "modo montanha", que muitas e muitas vezes havia me acompanhado em minha vida (Gracias grande Vavá por ter imbuído em mim esse desejo pela natureza selvagem :)).
Segui de volta para a cidade para alugar uns equipamentos para a escalada, comprar a comida para o máximo de 10 dias que eu teria no Parque Provincial Aconcágua, e devolver o carro que tínhamos alugado para ir para a corrida. No escritório da empresa de aluguel de carros pedi um espaço pra arrumar minha mochila.
Fiquei por ali um tempo tentando colocar tudo dentro, pensando no que deveria ficar por baixo e tudo mais, e quando por fim terminei e tirei a mochila do chão, fiquei assustado com o peso: meu primeiro pensamento foi que não seria possível caminhar os 40km entre Puente del Inca e Plaza de Mulas com toda aquela carga.
Como tinha optado por fazer uma tentativa totalmente solo e auto-suficiente (sem guias, empresas ou mulas para transportar equipamento e comida), eu já sabia que teria muito peso pra carregar, mas realmente não esperava tanto.
Sai dali caminhando até a rodoviária de Mendoza, tentando ajeitar o peso e por fim conclui que apesar de dificil e sofrido, eu conseguiria sim chegar a Plaza de Mulas com a mochila. A viagem rumo ao Teto das Américas estava finalmente começando.
Entrei no ônibus para Puente del Inca e sentei na janela já esperando curtir a paisagem do vale do rio Las Cuevas. A estrada RN7, que liga a Argentina ao Chile, é espetacular! Paisagem meio lunar, repleta de montanhas enormes e multi-coloridas na luz do entardecer, uns túneis bem rústicos escavados no meio das pedras! Cheguei em Puente del Inca (2750m) quando anoitecia e o frio quando desci do ônibus já me mostrou o que estaria por vir montanha acima.
Fiquei no Refúgio El Nico, um lugar simples mas muito acolhedor, com seu dono - César- muito atencioso e que já escalou o Aconcágua também. Tinham ali também um espanhol e duas francesas, e ficamos conversando até tarde da noite e aí fui finalmente dormir com a expectativa enorme de na manhã seguinte começar a realizar um dos grandes sonhos que vinha alimentando há tempos: chegar ao cume do Aconcágua.
Acordei cedo, tomei café e cai na estrada. Minha intenção era arrumar uma carona para os 4km subindo o asfalto entre Puente del Inca e a entrada do Parque, mas a manhã estava tão bonita que fui caminhando mesmo. Fiz os rápidos procedimentos burocráticos (mostrar a permissão, pegar um saco de lixo numerado que deveria apresentar cheio na volta) e entrei pela 2ª vez na vida no belíssimo Parque Provincial Aconcágua, que logo de cara nos brinda com a vista da Lagoa de Horcones e a imponente Parede Sul do Aconcágua ao fundo. Panorama espetacular de boas-vindas.
O objetivo do primeiro dia era chegar ao acampamento Confluência (3400m), que se chama assim por estar na junção dos rios Horcones Superior (que vem de Plaza Francia, acampamento base para a Parede Sul) e Horcones Inferior (que vem de Plaza de Mulas, acampamento base para a Face Norte, via chamada normal e por onde eu tentaria a subida). Eram 18km de subida suave, tranquila. Estava ainda me adaptando aos 42kg da mochila, mas subi num ritmo bom, curtindo o dia.
Cheguei no meio da tarde, acampei e fui fazer o 1º check-in médico obrigatório. Conversei um pouco com os guarda-parques sobre o clima nos próximos dias, sobre a vida deles ali no Parque e depois fui pra barraca cozinhar algo pra comer e depois deitei pra ler e logo adormeci.
Os ventos da noite não foram tão fortes quanto esperava e tive uma noite muito boa de sono. Acordei na manhã seguinte animado para encarar os 20km até Plaza de Mulas (4300m). Tomei café, reorganizei algumas coisas na mochila e comecei o longo dia (8h de caminhada). O caminho tem 2 partes dramáticas: primeiro a subida muito suave das Playas Ancha e Chica, com um terrível e frio vento contrário.
Caminhei lentamente nessa parte, parando a cada hora para um descanso de 10 minutos e percebi que estava realmente desgastado pelas recentes corridas de aventuras que tinha participado desde novembro (710km na final do Mundial de Corrida de Aventuras e 350km da XK Traverse em menos de um mês) e pelo peso enorme da minha mochila. Via as mulas passando com as cargas dos outros caminhantes mas estava feliz por estar ali por meus próprios esforços: desde que coloquei na cabeça que queria subir o Aconcágua, há uns cinco anos, sabia que só ficaria satisfeito se fosse solo e auto-suficiente. Então eu estava exatamente onde queria e fazendo o que queria. Mas era sofrido!
A 2ª parte dramática do dia chega quase no fim: a subida da Cuesta Brava. São uns 4km em que se faz a ascensão final de 3900m para os 4300m de Plaza de Mulas. Por alguma razão eu estava subindo melhor e com menos sofrimento que no quase plano da Playa Ancha. No meio da tarde então cheguei em Mulas (que é considerado o acampamento base mesmo para a escalada) e me surpreendi com a beleza do lugar. E com a estrutura.
Em Mulas é possível acessar a Internet, tomar banho quente, falar por telefone, comprar cerveja, vinho, refrigerante e alguma ou outra coisa como biscoito, macarrão. Tudo é muito caro, mas está disponível. Fiquei impressionado com o circo que se forma a 4300m de altitude. Fiz mais um check-in médico obrigatório e fui pra barraca comer alguma coisa e me preparar para dormir, mesmo sendo umas 18h e ainda tendo 3h de luz de dia pela frente. Estava cansado e com um pouco de dor de cabeça pelo dia duro de sol, peso nas costas, frio e altitude.
Acordei me sentindo super bem no meu 3º dia na montanha. Tomei café e fui fazer uma caminhada para o Cerro Bonette (5200m), para aclimatar. A manhã estava perfeita, me senti muito feliz por estar sem a mochila pesada e em boa forma. A caminhada passa por campos de gelo, rios congelados que com o sol da manhã começavam a prover uma água gelada e deliciosa, céu azul! E eu sozinho na trilha.
Com 2h de subida dura cheguei ao cume, com uma vista espetacular para vários vales e especialmente para a parede oeste do Aconcágua. Um dia perfeito nas montanhas. Justo o que eu sonhava encontrar nesta viagem.
Desci feliz da vida até o acampamento, dei uma olhada na previsão para os próximos dias, e comecei a me preparar mentalmente para o ataque ao cume. Normalmente demora-se uns 15 dias para fazer toda a escalada, mas meu prazo era mais curto e eu ia tentar me aproveitar da minha aclimatação prévia na XK Traverse (andamos um tempo na prova por volta de 3500m) para fazer tudo em 8-10 dias. Era arriscado mas era o tempo que eu tinha.
A manhã seguinte também estava perfeita e sai para conhecer o caminho para o próximo acampamento (Nido de Condores - 5400m), que era também de onde eu pretendia fazer minha tentativa de cume. A subida é super íngreme e dificil. No meio do caminho passei por Plaza Canadá (4900m), outro acampamento que pode ser usado no processo de aclimatação. Cheguei a Nido de Condores depois de 3h de subida. Me sentei um pouco por ali curtindo a paisagem e vendo a movimentação das expedições preparando-se para subir ao cume ou aos acampamentos superiores. Logo comecei a me sentir mal, meio lerdo e com muito frio. Eram finalmente os efeitos da altitude. Fiquei me sentindo miserável por ali um tempo, até que criei coragem pra começar a descida.
Estava ainda mal, me perguntando porque me submetia a tudo aquilo, até que quase chegando de volta a Mulas comecei a me sentir bem de novo. Com mais oxigênio e mais calor, a vida voltava a ser feliz.
Pra completar, encontrei com o Kilian Jornet subindo, um cara que é o maior corredor de montanhas de todos os tempos e meu grande ídolo. Estava ali para tentar bater o recorde de velocidade de ascensão e descenso do Aconcágua. Trocamos algumas idéias rápidas, ele super tranquilo e humilde, fiquei mais fã ainda.
Depois disso tive 2 dias inteiros de descanso e espera em Mulas. Foram dias de reflexão, camaradagem de montanha entre os poucos loucos que estavam ali tentando fazer o cume sem o apoio de alguma empresa. E espera.
Para se escalar uma montanha, como na vida, é preciso paciência. Às vezes muita paciência. Esperamos que nosso organismo se adapte à altitude. Esperamos por uma janela de bom tempo. Esperamos às vezes que algum companheiro volte a se sentir bem. De maneira geral, estamos ali sujeitos às intempéries do clima, e por isso dizemos que as montanhas são muito sentimentais e precisamos respeitar seu tempo e momento para fazermos nossa ascensão em segurança.
Outra coisa que pude perceber nestes dias acampando pelos Andes é como a vida na natureza torna-se bem mais simples. Eu acordava umas 7h da manhã e olhava para o tempo fora da barraca. A cada dia o visual me deixava impressionado. Mesmo assim, só criava coragem para sair da barraca às 9h30, que era quando o sol finalmente chegava à Mulas. Então assim, guiado pelo ritmo do sol e do clima, eu acabei criando uma rotina que me deixava a cada dia mais interligado com o ambiente ao meu redor.
Finalmente a janela de tempo bom parecia chegar e subi para Nido de Condores com toda carga na mochila outra vez, no meu 6º dia na montanha. Ainda em Mulas, tentei me hidratar o máximo que podia antes de subir e levei comigo 5 litros de água (2 litros para o restante do dia em Nido e 3 litros para o dia do cume). Estava com preguiça de derreter água em Nido (Mulas é o último lugar em que se pode obter água líquida), por isso essa estratégia de levar toda água comigo.
Cheguei mais uma vez a 5400m e enquanto montava a barraca comecei a sentir dores de cabeça. Tomei uma aspirina e me deitei, torcendo para ser passageira e não abortar minha tentativa. Revirei na barraca, tenso, e nada de melhorar. Tomei água, comi uns biscoitos e esperei. Depois de um longo tempo finalmente melhorei e sai da barraca para curtir o pôr do sol e cozinhar alguma coisa. A hora estava finalmente chegando.
Às 3h da manhã de 18 de dezembro, uma semana depois de ter entrado no Parque, acordei na barraca na noite totalmente sem vento e com um céu com um milhão de estrelas. O termômetro dentro da barraca marcava -15 graus. Tive um momento de hesitação sem saber se aguentaria o frio. Mas a noite linda e sem vento, e minha determinação em fazer o cume me tiraram do saco de dormir e parti para o tão sonhado objetivo.
A trilha começa meio sumida e ia me orientando pela outra única lanterna que via mais acima na montanha. Logo passei pelo acampamento Berlim (5800m) e pedi informações para um guia que estava por ali. Ele me indicou o caminho e passei por outro acampamento (Cólera - 6000m) quando o dia começava a nascer. Me senti aliviado porque tinha esperanças de que o sol amenizaria o frio que eu vinha sentindo nas mãos e nos pés.
E o visual que começou a surgir no horizonte era impressionante. Olhei pra trás e vi picos imersos entre as sombras e o amarelo do sol que nascia. Ao longe, quase imperceptível, estava a sombra triangular que o sol fazia projetar do Aconcágua. Senti meus olhos marejados e me emocionei por ter o privilégio de vivenciar um momento como aquele. Sem dúvidas essa cena estará para sempre comigo.
Ao passar pelo último refúgio (Independencia - 6100m), ia passar pelo 1º campo de gelo e me sentei para colocar os crampões. Daí até o topo os mantive nos pés o tempo todo. Comecei uma travessia longa na encosta que me lembrou o Grand Couloir no Mont Blanc, e depois disso começava a Canaleta.
A tão temida Canaleta é a parte mais difícil de toda escalada. São os últimos 400m verticais até o cume, que já está no visual. Mas a mistura de cascalho, pedras soltas e neve faz daquele local um verdadeiro inferno para quem já está cansado, desidratado e fraco de ter comido pouco.
Ouvi o Kilian dizer pro cinegrafista: "Cette Canaleta, ça c´est la miseré" (Esta canaleta, lá é a miséria). E foi realmente assim que me senti enquanto estava lutando para subi-la. Cai diversas vezes com a cara no chão, me sentindo humilhado por não ter forças, por não conseguir lutar contra essa subida maluca que era o último obstáculo antes de chegar ao tão sonhado Teto das Américas.
Diversas vezes parei e olhei pra trás pensando em dar meia volta. Diversas vezes visualizei tudo que tinha deixado para trás estar ali e me concentrava em seguir subindo.
Coloquei objetivos pequenos para ir subindo pouco a pouco. Uma pedra que estava a 3m acima de mim. Um campo de neve a 10m. Parava para descansar, me sentava, respirava fundo, pensava no meu pai. E ia subindo.
Canaleta (6500m)
Depois de quase 10h de ter saído da barraca em Nido de Condores, de repente, meio que sem perceber, finalmente cheguei ao cume. Nunca me senti tão cansado. Nunca mesmo. Tinha dificuldades de ficar em pé, queria me deitar e ficar ali. Para sempre. Um alemão que estava descendo do cume justo quando eu cheguei, tirou uma foto pra mim e depois perguntou se estava tudo bem. Respondi que estava exausto mas que me recuperaria ali para a descida.
E assim fiquei sozinho durante 1h na parte mais alta to mundo fora dos Himalaias. Era um sonho e eu estava curtindo uma viagem meio onirica mesmo. Não parecia real. Olhava a paisagem, pensava em todas as pessoas que gostariam de estar ali comigo, sorria feliz por ter conseguido. Pelo menos a metade do caminho.
Tirei mais umas fotos, fiz um video maluco e decidi que era hora de descer. Não tinha mais água nem comida e uma longa e perigosa descida pela frente. Quanto antes eu começasse, melhor.
Desgastado e meio desorientado ainda, fiquei uns 20 minutos para recolocar os crampões (que não sei porque tinha tirado para subir as últimas pedras antes do cume) e depois comecei dramática e perigosamente a descer. Estava muito esgotado de tudo. Olhava para a descida da canaleta e não me achava capaz de superá-la.
Descia 5 passos, tropeçava, sentava para descansar. Comia um pouco de gelo para atenuar a sede. Pensamentos vagos. Concentração e recomeçava a descer. Tinha pouca gente tentando o cume aquele dia. Não cruzei com quase ninguém e me sentia super desprotegido naquele ambiente imenso que eu tinha ousado desafiar.
Por fim cheguei ao fim da caneleta e por um atalho, que por acaso descobri, cheguei em Nido de Condores 2h30 depois de deixar o cume. Fui até os resgatistas pedir algum liquido e me deram um chá deliciosamente doce, tomei mais uma xícara e criei coragem para desarmar a barraca e descer para Mulas, onde finalmente terminaria aquele dia incrível e interminável.
Cheguei às 19h15, ainda sem entender direito o que tinha acabado de fazer, meio flutuando. Acessei a internet para dizer pra todos que estava tudo bem depois do cume, armei minha barraca e entrei num sono profundo. Não tinha mais nenhuma comida e tive que me virar para driblar a fome.
Na manhã seguinte gastei 6h para chegar em Puente del Inca, onde finalmente comi bem, tomei um banho quente e peguei o ônibus da tarde para me levar de volta ao calor de Mendoza, que eu tanto esperava e desejava depois de 8 dias de muito frio e privações nas montanhas mais lindas e desafiadores que já tinha encarado na vida.
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