A segunda edição da Jungle Marathon foi disputada no Pará, no Parque Estadual do Tapajós. Eu já havia acompanhado a primeira edição da prova –
inclusive correndo algumas das etapas “só para ver como era” – e desta vez resolvi participar para valer. No dia 14 de setembro, embarquei para Santarém.
Na noite anterior à nossa ida para o acampamento-base, ainda no hotel em Alter do Chão (um vilarejo a 40 minutos de Santarém), só a minha mesa de jantar acumulava 30 Maratonas Des Sables (MDS), uma das ultramaratonas mais tradicionais e difíceis do mundo, e cujo formato, em seis estágios divididos em sete dias, serviu de modelo para a Jungle Marathon. O marroquino Karim Mosta havia feito 15 MDS, o francês Gerard Verdenet, cinco, e a alemã Anke Molenthin, 10 (sendo que em duas delas ela foi a vencedora no feminino). Conversando com os outros competidores, descobri que 90% deles não só tinham corrido a Maratona Des Sables, mas eram também veteranos em outras ultras como a Comrades (89km, na África do Sul), Desert Cup, Badwater e Gobi March. Casca. Para esses corredores, a Jungle Marathon surgia como uma alternativa de novos desafios, novos percursos, novas paisagens. E eu, que nunca me considerei uma corredora e que nunca havia feito sequer uma maratona, me preparava para encarar o desafio junto com eles.
Seriam 200km divididos em seis etapas. Ao final de cada uma, chegaríamos em um acampamento improvisado onde encontraríamos somente uma rede para dormirmos e água quente para nossa refeição. A Jungle Marathon é uma corrida de auto-suficiência: os competidores têm de carregar toda a comida, roupa e equipamento de que irão precisar nos sete dias de prova. Qualquer tipo de ajuda externa significa desclassificação.
No dia seguinte saímos de Alter do Chão em dois barcos e subimos o rio Tapajós por quase 11 horas até chegar ao acampamento-base montado pela organização, onde passaríamos dois dias e receberíamos instruções de sobrevivência na selva e o briefing de prova. Era lá também que montaríamos nossas mochilas – o primeiro e decisivo passo da Jungle Marathon.
Preparativos
Depois de socar numa mochila de 35 litros o que eu considerava o mínimo para passar a semana, pesei-a na balança portátil de um corredor irlandês e vi que ela passava dos 12 quilos – isso sem os 2,5 litros de água obrigatórios, que teríamos de levar sempre. Passei a tarde desfazendo e eliminando itens dos kits de comida, do kit de primeiros socorros, do kit de higiene. Consegui chegar a uma mochila de oito quilos – nada mal para uma principiante, mas ainda longe dos 6 a 7 quilos a que os corredores mais experientes conseguiram se limitar. Ficaram os kits de comida, agora bastante racionada, os pós isotônicos (contados), um kit irrisório de primeiros socorros, a headlamp, o meio rolo de papel higiênico e a escova de dentes com o cabo serrado. Foram-se refeições inteiras, todo tipo de comida extra, toalha (daquelas pequenas e ultraabsorventes), meia extra, metade do sabonete e a camiseta de manga comprida para dormir.
Os 92 corredores trocavam conselhos sobre como diminuir o peso, comparavam equipamentos e dividiam a ansiedade e o nervosismo. Não só percorreríamos 200km em mata fechada, sob temperaturas de até 40ºC e umidade de até 100%, cruzando pântanos e igarapés em uma região infestada de jacarés e piranhas. Também enfrentaríamos cobras, aranhas e algumas das regiões com maior quantidade de onças por metro quadrado da Amazônia.
Eu e Carlos Dias, ambos paulistas, éramos os únicos atletas brasileiros inscritos. Outras 15 pessoas do exército e das comunidades locais foram convidadas a participar como parte de um projeto social. Nos somaríamos a ultramaratonistas vindos da Nova Zelândia, Escócia, Irlanda, Inglaterra, França, Israel, Itália, Alemanha, Singapura, Taiwan, Suécia e Coréia, entre outros. O clima era de Copa do Mundo: cada um mostrava a bandeira de seu país nas camisas, nas mochilas, nos bonés. Mais do que nunca, eu sentia a responsabilidade de ser a única mulher brasileira.
1ª etapa – 15,7 km
Não se deixe enganar pelos números: esses 15,7km em mata fechada foram terrivelmente longos. O percurso subia e descia inúmeras vezes as maiores montanhas da região. Não havia refresco: quando não estávamos subindo pirambas, bufando sob o peso das mochilas ainda lotadas, estávamos tentando poupar joelhos nas descidas íngremes. Quando não estávamos andando pela encosta inclinada de uma montanha, estávamos cruzando igarapés. Não me lembro de ter andando mais de 200 metros num lugar plano e seco.
Segundo as informações dos competidores estrangeiros, a corredora mais forte na prova era a alemã Anke, com centenas de milhares de quilômetros rodados com as próprias pernas. Em vez de me poupar para os outros dias, decidi forçar o ritmo e ver de uma vez se seria possível brigar com Anke e assim traçar uma estratégia para a prova. Passei-a antes do primeiro PC e a partir daí corri feito louca, forçando o ritmo até a chegada. Nas 4h16min que levei para fechar essa etapa, não fiquei nenhum momento dentro de um limiar confortável – se fosse pra ficar confortável, era melhor nem ter saído de casa, eu dizia para mim mesma. Foi uma decepção saber que Anke havia chegado cinco minutos antes de mim – provavelmente ela havia me passado na hora em que segui uns 100 metros por uma trilha errada.
Banho de rio, comida, massagem (quando vi a maca e o quiropraxista inglês ali no meio do nada, achei que era miragem), cuidados com os pés e o sono dos justos na rede, sentindo a brisa do Tapajós – pela primeira vez eu executava essa seqüência, que se tornaria rotina nos próximos dias. O primeiro estágio estava terminado, e tinha sido mais difícil do que todos esperavam.
2ª etapa – 23,9km
O brasileiro Josimar Paes Dias, primeiro colocado desta etapa, levou 4h50min para percorrer os quase 24km – isso já dá uma idéia do tipo de terreno que encontramos pela frente. Eu, a primeira mulher, levei 6h15min, depois de ter tido um dia bem complicado. Saí forte, me sentindo bem, ultrapassei Anke e logo depois quase fui picada por uma surucucu que se escondia sob um tronco. A surucucu, além de venenosíssima, tem um bote que chega a ¾ do seu comprimento. Minha sorte foi que logo atrás de mim vinha um dos brasileiros do exército, que gritou para que eu pulasse, pegou um pedaço de pau sei lá de onde e matou a cobra antes que eu entendesse o que estava acontecendo.
Depois disso, fiquei um pouco tensa de correr sozinha, o que nunca tinha sido um problema para mim. Para piorar a situação, eu havia acordado com dores de estômago e comecei a sentir muita fraqueza. Anke me passou e eu continuei num ritmo fraco, já dizendo para mim mesma que um 2º lugar na Jungle Marathon já estaria mais que bom. Mas quando vi Anna McPherson, uma corredora inglesa, atrás de mim, busquei forças sei lá aonde e corri tanto que não só abri da Anna como passei Anke. Os últimos 3km foram um misto de adrenalina e purgatório: sem saber o quão atrás de mim elas estavam, eu ia no limite, achando que estava ouvindo os passos das duas na mata. Quase desmaiei ao final, mas cheguei 5 minutos à frente de Anna e 12 à frente de Anke.
3ª etapa – 31km
Pela primeira vez, o percurso deixou de lado as montanhas. Mas as trilhas estreitas, os troncos caídos e os igarapés ainda estavam lá. Me senti bem durante todo o dia e, sabendo estar em primeiro, tentava andar o mais rápido possível. O tempo todo eu “negociava” com meu corpo, forçando quando dava, detectando quedas de glicose ou falta de sal, mantendo o frágil equilíbrio do corpo sob esforço extremo. Eu e outros corredores nos perdemos numa trifurcação mal sinalizada e acabamos perdendo 10 minutos. Mesmo assim, cheguei novamente em primeiro, três minutos à frente da inglesa Anna e 5 horas e meia depois da largada. Anke havia começado a sentir fortes dores na perna e veio num ritmo bem mais lento, chegando mais de meia hora depois. No masculino, o vencedor da etapa foi o coreano Ki Hyung.
Os brasileiros do exército mostraram que equipamentos de ponta não são tudo: dos 15 primeiros colocados, nove eram brasileiros. Fico imaginando o que eles não fariam se tivessem tênis, equipamentos e alimentação adequada. Muitos chegam reclamando de cãibras generalizadas, depois de terem passado o dia inteiro só tomando água, sem repor sais nem ingerir carboidratos.
4º etapa – 21km
A quarta etapa começou com uma travessia a nado de 200 metros. Foi quase uma catástrofe coletiva: a corda que serviria de apoio para os atletas afundou assim que os dez primeiros tentaram se segurar nela, e todos viram-se obrigados a nadar com as mochilas nas costas. Levei uns 15 minutos para sair da água e outros 20 até que minhas pernas parassem de tremer. O dia não havia começado bem.
Até agora não sei até que ponto a natação me abalou psicologicamente, mas o fato é que nesse dia me senti fraca e desmotivada. Para completar, minha lombar tinha resolvido tornar quase impossível o que já era difícil. E com a dor e a consciência de estar ficando para trás, vieram os pensamentos negativos, mais cansaço, mais dor – uma espiral rumo ao inferno. Eu me consolava dizendo a mim mesma que era um bom dia para segurar o ritmo – era melhor descansar para a etapa longa do dia seguinte.
Esta foi a etapa mais plana e com trilhas mais abertas da prova, o que foi uma desvantagem para mim. Anna, ótima corredora, abriu meia hora de vantagem. Nas trilhas fechadas, ela não conseguia usar toda sua força. Cruzei a chegada quase cinco horas depois do início e precisei de muito tempo dentro do rio que beirava o acampamento e depois na maca de massagem para recompor o corpo e a mente.
5a etapa – 86,5km
O grande dia havia chegado. Todos acordaram às 3:30 da manhã para se prepararem para a largada, anunciada para as 4:30hs. Minha estratégia para aquele dia seria o tudo ou nada: iria aproveitar a experiência das corridas de aventura e fazer os 86km sem parar. Se dessa vez a inglesa não saísse da minha cola, não sairia nunca mais!
Nos primeiros 45km, feitos em mata bastante fechada, acompanhei alguns brasileiros do exército. Como eles andam rápido no mato! Foram ótimos “coelhos”. Em oito horas, terminamos a parte de selva, passando com folga no corte. Os militares ficaram no PC, cuidando dos pés e comendo, e segui sozinha. Só fui ter companhia novamente 20km depois, desta vez o canadense Ray e o inglês Chris. Ray também é corredor de aventura, já tendo feito alguns Eco-Challenges. Já Chris nunca havia feito atividade física por mais de seis horas e mostrava-se bastante cansado. Foi ótimo me juntar a eles na trilha – eu já estava começando a falar alto, comigo mesma, para espantar o cansaço e me convencer a não parar.
Passamos pelo PC7, a 20km da chegada, antes das 19hs. A marcação das trilhas, que até então tinha sido boa, estava bem complicada nas últimas horas. Mas seguindo pegadas na areia e procurando as fitas amarradas em árvores, conseguimos achar o caminho, ainda que perdendo muito tempo para isso. Me mantive fiel ao plano de não parar nem para comer e, 19 horas depois da largada, às 23h30, finalizei a etapa em 12º lugar (1ª entre as mulheres). Somente 15 pessoas chegariam ao acampamento ainda naquela noite.
O dia seguinte era livre, ou seja, descanso total para os que já haviam terminado e prazo final para os que estavam a caminho. Anna chegou só as 9h30 da manhã, junto com a maioria dos outros corredores – quase dez horas depois de mim.
6ª etapa – 24kmNão me preocupei muito com o ritmo, pois tinha certeza que na etapa longa eu já tinha colocado uma vantagem bem confortável em cima da inglesa. O pórtico de chegada, na pracinha central de Alter do Chão, parecia outra miragem, ainda melhor que a maca de massagem. Então eu podia parar de andar? Inacreditável? Tomar guaraná gelado também pode? Ai, que delícia! Tirei o tênis e deixei o pé inchado dobrar de tamanho, despejei água gelada na cabeça, recebi a medalha e a camiseta brega porém feliz com o logo da prova e a inscrição “Survivor”. Eu havia sobrevivido à Jungle Marathon!
Polêmica
A alegria durou pouco. Meia hora depois de ter me dito que eu “sem dúvidas havia ganho a corrida”, o diretor de prova, Robert Pollhamer, me chama novamente e diz que tem más notícias. Anna teria sido “obrigada” a ficar no PC 7 pela equipe médica e pedia que o tempo que havia ficado parada fosse descontado de seu total.
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Gostaria de agradecer à Try On pelo patrocínio e apoio irrestrito em mais essa empreitada; à Cristina de Carvalho (Adventure Training) e ao Luciano D’Elia (Única Academia) pelo treinamento, à Heloísa Guarita pelo planejamento nutricional e à Shubi pelos equipamentos. Sem vocês este relato não seria possível.
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