“O que eu estou fazendo aqui” - A importância do psicológico em uma prova de aventura

Por Flavio Aguiar - 15.Aug.2005

Qual foi o corredor de aventura que nunca, durante uma prova, se questionou: “O que eu estou fazendo aqui?” Essa dúvida é inerente ao esporte, está diretamente relacionada com a preparação psicológica de cada um. Todo mundo que corre já fez essa pergunta alguma vez e a grande questão é: Será que vou parar de fazê-la algum dia? Ou ainda: Em que momento, durante a prova, esse pensamento vai passar pela minha mente? É exatamente sobre isso que vou comentar agora.

Quando comecei a fazer trilhas, eu pesava 13Kg a mais do que peso hoje. Na época, me faltava força muscular e condicionamento aeróbico. Além de todo o esforço que eu tinha que fazer para não desistir e parar pelo caminho, eu tinha também que ouvir calado a reclamação dos meus companheiros que me achavam lento, peso morto ou pensavam que eu estava atrapalhando. O desgaste físico, associado ao desgaste psicológico, fez com que eu desistisse de algumas trilhas, me impediu de participar de passeios mais longos e, por fim, fez com que o tesão e o desejo de completar uma caminhada se perdessem algumas vezes, colocando o sentido e a razão de tudo aquilo à prova. Nesta época, percebi que havia dois caminhos: Me esforçar muito ou desistir. Aí entra o 1º aspecto psicológico em jogo: A paixão.

A paixão e o início do treinamento - Apesar da subjetividade da palavra, sabemos que precisamos de algo que venha de dentro, algo que justifique qualquer sacrifício. Amor e paixão são sentimentos fortes, apesar de distintos, porém, sem motivação, o ser humano não segue adiante, não enfrenta os obstáculos e não luta por seus objetivos. Comecei então a fazer uma dieta, a fazer trilhas todos os finais de semana e entrei na academia. É importante destacar que toda decisão tem um preço e todo início é muito sacrificante, ou seja, custa caro. Malhar dá mais fome, comer antes de malhar desestimula e atrapalha, fazer uma reeducação alimentar não é fácil. Pegar pesos de 3Kg e ver as meninas da academia pegando 4 vezes mais também não é fácil. Encarar os armários que pegam 300Kg e pensar que você nunca vai fazer algo parecido também abala muito qualquer um. Nesse instante você descobre se tem ou não o espírito de um corredor de aventura. Serão muitas as provações em uma corrida e você começa a lutar muito antes dela. A luta começa quando você toma a decisão de que vai praticar este esporte. Aos poucos consegue-se controlar o apetite; a fome e a dor diminuem; a substituição dos alimentos acontece à medida que você consegue abrir mão do que gosta ou de parte do que gosta e acrescenta o que faz bem, buscando um equilíbrio alimentar. Na academia, os três primeiros meses são os mais letais. Depois desse período, se você conseguir uma freqüência mínima de três vezes na semana, sem faltas, você começará a trocar sua gordura por massa muscular, mas ainda assim, ficará irritadíssimo por não estar perdendo “peso”. As frustrações são muitas, mas diminuem com o tempo.

Com o tempo também as trilhas de finais de semana se tornam mais fáceis, você começa a pedalar com mais facilidade e aumenta gradativamente as distâncias ou começa a fazer a mesma distância em tempo menor.

Os resultados começam a aparecer. O início da formação de um atleta - O tempo e a persistência caminham juntos quando você tem um objetivo; e assim o treinamento começa a fazer efeito, a dar resultados e o seu físico evolui. Mas isso não é tão relevante quanto se pensa. A etapa preparatória hoje é considerada “básica”. Apesar de exigir muito de nós, é um pré-requisito elementar para todo corredor de aventura. Isso não diferencia muito os atletas, ou seja, os treinos, a preparação física e cardio-respiratória não bastam. Durante o período de preparação física, espera-se que o atleta de corrida de aventura também treine modalidades específicas. Conhecer e dominar diferentes tipos de embarcações (canoagem), acostumar-se a caminhar e pedalar em diferentes terrenos e situações, saber navegar e encontrar uma equipe também são pré-requisitos obrigatórios e do mesmo modo “básicos”.

Conhecidas e “dominadas” as modalidades, tendo um bom preparo físico e vencendo as suas dificuldades “iniciais”, você terá parte do que precisa um atleta de aventura. Agora falta a outra metade, a metade psicológica.

A preparação psicológica - Chegar até aqui já é muito trabalhoso, sacrificante e caro também, porém você ainda tem muito pouco e se acha que não vale a pena ou que não tem condição de fazer tudo isso, sinto muito mas você já desistiu de ser um corredor de aventura. Caso contrário, siga em frente e continue lendo. A partir daqui, você já incorporou a palavra esforço no seu dia a dia e fique com ela em mente, pois esta será a sua palavra-chave daqui para frente.

Podemos dizer que a preparação psicológica começa quando você “descobre” o esporte. É sempre bom presenciar uma corrida antes de pensar em fazê-la. Esse primeiro contato mostra o que os outros estão passando, mostra como a coisa é, como os competidores chegam e ao que eles se submetem. Neste momento, o aspirante a corredor deve se perguntar: “É isso que eu quero para mim?”, pois o esporte trata-se de um caminho sem volta, ou se ama ou se odeia.

Uma equipe nova, em uma prova dura e longa, tende a quebrar fisicamente e psicologicamente. Desse modo, uma estratégia interessante é estrear em corridas curtas. Administrar uma dupla é muito mais fácil do que um quarteto misto: esta é uma outra vantagem para se começar em provas curtas que, geralmente, são corridas em dupla.

Autoconhecimento, comunicação interpessoal, conhecer os companheiros e o que chamo de “conceito do elo mais fraco da corrente” formam a atmosfera da equipe e interferem diretamente no psicológico da equipe e seus integrantes.

Conhecer-se é fundamental e, ao mesmo tempo, complicado. Apenas a experiência vai lhe ensinar o que comer, o quanto comer, quais seus pontos fortes e fracos, quais as modalidades em que você tem mais habilidade e qual o seu limite. Durante o treinamento, você poderá se testar e se comparar com outros atletas e também com a sua equipe. Conhecer seus companheiros é tão importante quanto conhecer a si próprio. O ideal seria saber o que cada um deles está pensando, mas, infelizmente, isso não é possível, obviamente. Porém, com o tempo, você passa a identificar os sinais de cansaço dos seus companheiros e também pode ajudá-los a administrar o stress físico e psicológico durante uma prova. Somente com muito treino, muita conversa e também intimidade e amizade, você poderá se aproximar do seu companheiro e formar uma unidade dentro da equipe.

O diálogo, a comunicação entre os integrantes é essencial. Se você sabe, por exemplo, que seu companheiro sob stress esquece-se da alimentação, alguém na equipe precisará lembrá-lo disso. Se você tem uma menina correndo com TPM, por exemplo, você precisa saber disso e tratá-la com mais atenção e respeito do que o de costume. Se você sabe que um integrante é mais fraco em determinada modalidade, você precisa guardar energia para poder ajudá-lo naquele momento ou precisará conseguir controlar a sua ansiedade e frustração ao ver outra equipe ultrapassando a sua, quando você sabe que pode ir mais rápido. Aí entra o conceito do elo mais fraco da corrente: “Uma equipe é tão forte quanto o elo mais fraco de sua corrente”.

Cada atleta terá suas “fortalezas” e “fraquezas” e é preciso que a equipe saiba exatamente quais são elas. Se você é fraco no trekking, sua equipe terá que ir tão rápido quanto você consiga e isso vale para qualquer atleta ou modalidade. Uma equipe forte psicologicamente identifica as suas fraquezas e presta apoio ao atleta em seus momentos mais difíceis. O sentido de dar uma mão, rebocar, gritar com o outro, vai variar de acordo com a forma e com a intimidade e cumplicidade de cada equipe e cada atleta. O fato de um atleta precisar ser rebocado pode ser interpretado, ao mesmo tempo, como uma fraqueza ou fortaleza para o atleta e para a equipe. A pessoa ajudada precisa saber administrar a frustração e saber que aquilo é passageiro e que em outra modalidade ou outro momento da corrida, ele poderá ser o elo mais forte da corrente e assim sucessivamente. É preciso que a equipe ajude este atleta e, ao mesmo tempo, este se esforce ao máximo para merecer o auxílio prestado. Se qualquer elo ficar abalado com esta situação, a equipe, não vai desenvolver o quanto pode e corre o risco de “arrebentar”, ou seja, desistir.

O autoconhecimento ajudará, à medida que você tenha consciência de suas limitações e saiba o nível de contribuição que poderá dar dali para frente. Do mesmo modo, o atleta que presta ajuda precisa ser solidário e não encarar a ajuda como “quem carrega um fardo”. Ele pode precisar da mesma ajuda em outra prova ou mesmo nesta prova em outro momento da corrida. Essa compreensão deve vir desde antes da corrida e todos devem estar preparados para estes momentos. O aspecto emocional, no entanto, não se limita apenas ao stress e limite físico, ele vai muito além. O frio, o medo, estar perdido, estar mal colocado ou conviver com integrantes em estado físico inferior ou superior ao seu, podem desenvolver um processo de stress que o leve a fazer a pergunta inicial do texto:

“O que eu estou fazendo aqui?”. Realmente não é tarefa fácil encarar baixas temperaturas, saber que está entre os últimos, saber que você é o mais fraco da equipe – naquele momento – ou perceber que você poderia estar melhor, mas que alguém da sua equipe o impede de ter uma evolução mais rápida. O que fazer neste caso, desistir?

Nessa hora, conhecemos quem tem o verdadeiro espírito de corredor de aventura. Será que todo o sacrifício, os treinos, a preparação física e psicológica, o investimento, os apoios, tudo que você fez para chegar até ali devem terminar diante da adversidade enfrentada? O frio, o escuro, o erro na navegação, a fadiga, seja ela sua ou de seu companheiro podem tirar você de uma corrida?

Podem e vão tirá-lo se você se deixar abater e se fizer a pergunta para você ou para seu companheiro. Quando a lógica não é mais capaz de explicar a sua permanência na prova, vem do seu “coração” a certeza de seguir em frente. Você venceu até ali e deixou para trás muitos obstáculos: qual será o obstáculo que poderá vencê-lo? É você que deve vencer os obstáculos e cabe a cada integrante da equipe manter isso em mente, seguir com a certeza inquestionável de que cruzará a linha de chegada. Para isso é preciso conhecer os seus limites e expandi-los cada vez mais, pois o seu limite nada mais é do que um dos obstáculos que poderá ser vencido, caso assim você deseje.

Por fim, uma equipe forte psicologicamente é aquela que tem habilidades técnicas, força física e sobretudo a certeza em mente de que vencer significa superar seus próprios limites, deixando para trás toda a adversidade sem se questionar, podendo assim se orgulhar da conquista, ainda que esta conquista seja, “apenas”, cruzar a linha de chegada.

Flávio Aguiar – Equipe Cachorro do Mato
flavio@latitudezero.esp.br
www.latitudezero.esp.br

 

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