O mundo das corridas de aventura não me é novo. Minha estréia foi em 2008, no Haka Race de São Roque, circuito que tenho a honra de assessorar e pelo qual tenho o maior carinho. Tive, aliás, a honra de testemunhar o nascimento do Haka, numa, digamos, 'prova piloto' na pousada Fazendinha, em Nazaré Paulista (SP). Curiosamente, foi em Nazaré, mesmo, cinco anos e dois parceiros de dupla depois, que consegui meu melhor resultado, em outro circuito, o Troféu SP.
André Siqueira, atual companheiro na equipe Keep Walking (que fundei em 2007) é um velho colega de jornalismo e estreou na aventura em 2009, num Haka realizado em Extrema (MG). Pra quem, como eu, não faz parte de um grupo de treinamento, garimpar talentos dispostos a encarar três, quatro horas de perrengue debaixo de sol e chuva não é tarefa fácil. Sim, o tal vírus da corrida de aventura ao qual tantos se referem, existe. Mas despertá-lo em terceiros nem sempre é simples. Fato é que com o André funcionou. Quando voltamos a falar, após alguns anos sem contato, ele havia acabado de comprar uma bike (Caloi Elite 2.4) e estava empolgado pra encarar trilhas. "Por que não correr uma prova de aventura?", provoquei. Pois, o André se revelou um baita corredor, incorporando, nas provas, o espírito competitivo que sempre teve em outras atividades. Azar deste que vos escreve, obrigado a suportar todo tipo de cobrança por resultados durante as provas. "Vamos, Danilo, olha os caras ali na frente. Vamos pegar!", costuma me provocar, sempre ‘pilhado’ pra buscar posições.
Pois bem, como costuma dizer o Sandro Badaró, corredor experiente, quando se faz uma prova com o objetivo de terminar, é possível curtir os detalhes, admirar a paisagem; mas, se a idéia é brigar por pódio, esqueça as belezas da natureza: o jogo é olhar pra baixo e fazer força, exigir do corpo até a última gota de suor e a derradeira contração muscular. ‘Sangue nos zóio’ não combina com contemplação. Enfim, depois dessa longa introdução e cinco anos depois de meu primeiro contato com as provas de aventura, ali em Nazaré, lá estávamos, eu e André, perfilados em meio outras dezenas de atletas envergando a camiseta vermelha da etapa e paramentados com capacetes, luvas e mochilas de hidratação. O sol de rachar e a represa de Nazaré, de águas limpas e verdinhas, em torno da qual já havia pedalado tantas vezes, prometiam um dia maravilhoso e bem quente. Mas a idéia era chegar na frente.
Depois de um briefing rápido, João Castro, organizador do circuito, deu a largada. Aquela tensão invisível que toma conta de todos os corredores antes de uma largada dá lugar a uma explosão de energia. Uma explosão boa, diria, pois foi suficiente pra nos fazer embrenhar nas estreitas trilhas da mata que cerca a pousada, com um foco e um pique que nem acreditei. Em minutos, subimos o morro, completamente íngreme e atingimos o topo, calculo, na terceira posição, escapando das inevitáveis armadilhas que esse tipo de terreno impõe - como pedras, galhos e buracos. Um passo em falso nessas arapucas e a prova acaba mal tendo começado. Lá de cima, a vista da represa merecia horas de contemplação. Mas não havia tempo; descemos na metade do tempo que havíamos levado pra subir, hora saltando sobre os buracos, hora nos esgueirando por debaixo de galhos e outras, ainda, metendo a bunda no chão e escorregando morro abaixo para ganhar tempo. Corrida de aventura de resultado.
Chegando na área de transição (AT), pegamos as bikes e iniciamos a segunda perna, um trecho muito conhecido dos ciclistas, a volta dos 20 quilômetros. Nesse ponto, a familiaridade com o terreno, que já havia percorrido algumas vezes, ajudou; a orientação, fundamental para o sucesso numa prova de aventura, ficou em segundo plano. Navegamos no automático e, logo, o André abriu vantagem, deixando pra mim, mais de um minuto atrás, a ingrata tarefa de disputar palmo a palmo a posição com uma dupla mista que vinha logo atrás. Felizmente, a vantagem serviu pra que cumprisse, com tranquilidade, a modalidade seguinte, a travessia a nado do vertedouro da represa (atividade obrigatória para apenas um integrante de cada equipe) enquanto eu me recuperava de umas câimbras com uma balinha de sal horrorosa que ele levava na mochila.
Já recomposto, não esperei que o André atingisse a margem e saí forçando a mão em direção ao PC seguinte, esperando que, em algum momento, ele me alcançasse. Passei pela barragem do rio que dá origem ao vertedouro e em seguida por uma sequência de subida leve e descida acentuada no asfalto, chegando novamente na estrada de terra que nos levaria de volta à Fazendinha, onde trocaríamos de modalidade. Trecho conhecido, estrada de terra bem regular e fiz o que sei fazer: pedalei. Cheguei a abrir uma boa distância pro André; mas corrida de aventura é assim mesmo: as habilidades se compensam. São cinco modalidades e, por mais que você seja bom, digamos, no trekking, pode ficar pra trás do seu colega no remo ou na corrida. Grosso modo é como no futebol; um zagueiro até marca seus gols, mas o que sabe fazer mesmo é interceptar os adversários. No meu caso, hoje em dia o forte é a bike, embora me vire na corrida e no remo.
Enfim batemos na Fazendinha, assinamos a planilha que comprovava nossa passagem pelo PC e partimos pra seis quilômetros de remo, minha pior modalidade, intercalados com uma passagem em trekking. Aqui cabem uns parênteses: quem vive em São Paulo tem três opções pra treinar essa modalidade: simular exercícios que exijam dos braços e costas numa academia (o que, convenhamos, pode ajudar, mas não é o mesmo que remar) ou treinar na represa de Guarapiranga ou na raia da USP. Como a Guarapiranga é no extremo da zona Sul e os horários de treinos na raia são meio escassos, os caiaques são, prá parte dos aventureiros paulistanos, um território desconhecido. E lá estava eu, dependendo das habilidades navegatórias-pluviais pra ganhar o Troféu-SP. “Se conseguir pelo menos não perder posições agora, tamos no pódio”, pensei. Fomos em frente e, pra minha surpresa, de remada em remada, conseguimos passar uma equipe.
Mais uns quilômetros de trekking (esses feitos num bom ritmo de corrida, de uns 10 quilômetros por hora) e voltamos pros caiaques, prá última perna. Agora, bastaria administrar a vantagem pros competidores que vinham atrás, cruzar a linha de chegada e garantir o pódio. Remar, numa situação em que você está ansioso pra pisar no pódio, é um exercício de paciência. Diferentemente das corridas ou das bikes, num caiaque, por mais esforço que você faça, a velocidade é mais ou menos constante. Experimente querer forçar a mão e você ficará esgotado em minutos. Sendo assim, vale mais baixar a cabeça, fechar os olhos e se concentrar em fazer corretamente o movimento de levar as pás dos remos à água, com ritmo e constância. Com a paciência que não costumo ter, conduzi o caiaque amarelo até o porto e subimos a longa ladeira que dá acesso à base da prova para cruzar a linha de chegada em segundo lugar na categoria Sport Masculina, terceiro na Sport Geral. Missão cumprida.
Claro, não somos heróis, apenas amadores apaixonados por esse esporte desafiador, que exige da mente e do corpo. Mas, sem correr o risco de esbarrar nos clichês, um pódio não se constrói na prova, mas no dia-a-dia. Tanto eu como o André nos dedicamos bastante no mês e meio que antecedeu a prova; treinamos sozinhos e juntos, na USP, incluindo, sempre que possível, uma passagem pela subida do Matão, pra ganhar fôlego. Outro ponto: em geral, os resultados não vêm de primeira, mas exigem várias participações, que servem pra aprimorar habilidades de navegação e gestão do esforço. É preciso conhecer o próprio corpo e desenvolver o feeling, pra perceber a hora de acelerar abrir vantagem sobre os adversários, e o momento de se poupar pra não quebrar e ficar pelo caminho. É isso que ensinam mestres como Paul Tergat e Haile Gebrselassie. Se, vez por outra, pudermos ser um pouco como eles, melhor.
Agradeço ao João Castro (Trofeu-SP), Wlad Togumi (Adventuremag), Pablo BUcciarelli e Léo Barbosa (Haka) pela parceria. André Siqueira, pelo resultado e à minha noiva, Renata, companheira nessa aventura da vida. Keep Walking!
* Danilo Vivan é jornalista, corredor de aventura e consultor do circuito Haka Race
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