Dia perfeito! Céu azul, muito sol e temperatura amena, ótimo para correr! Foi assim que comecei o La Mision 160 Km na Patagônia Argentina, com 8.000m de desnível positivo acumulado e 76 h para finalizar. Prova de "semi" auto-suficiência, já que poderíamos enviar duas sacolinhas com comida para os acampamentos (um no km 60 e outro no km 110). O equipamento todo deveria ser levado na mochila: saco de dormir, roupas para frio, calça de montanha, anorak, kit de primeiros socorros e a comida, totalizando uns 7 quilos. A água se pegava nos rios...
Na primeira La Mision que fiz não consegui ver muito bem as paisagens, estava totalmente nublado e na maior parte do tempo choveu muito, com tempestades de granizo, nevascas e ventos de mais de 100km/h. Desta vez comecei a prova achando tudo lindo e diferente!!!
No cume do cerro Bayo, minha primeira surpresa: se avistava lá em baixo o lago Nahuel Huapi, simplesmente maravilhoso! Fiz a descida com cuidado (muito íngreme, um perigo para os joelhos!) e pensei que não teria necessidade de chegar lá em baixo tão rápido, afinal só tinha percorrido 12km...
O primeiro bosque estava fascinante, eu estava em um ritmo bom e confortável, aproveitando tudo, prestando atenção no meu corpo e ao meu redor. Após fazer o cerro Três Nascientes e o cerro Bonito, na descida rumo ao primeiro acampamento meu corpo começou a dar sinais de que algo estava errado... fiquei enjoada e já não queria comer... Cheguei no primeiro acampamento no inicio da madrugada: 1.20h, preparei uma sopinha, arrumei um lugar perto de uma parede para encostar. O acampamento era um verdadeiro campo de refugiados, pequeno e cheio de areia no chão. As pessoas se jogavam onde podiam, mal tinha lugar para circular.
Comi devagar, encostei e fechei os olhos para passar o mal estar. Nesse momento a Giuliana Zanatta me chamou perguntando se poderia ir comigo, pois seu marido havia desistido. Pensei: isso é bom, pois se eu ficar mais tempo aqui será pior.
Foi ótimo, excelente companhia! Subimos o bosque atacando o cerro Pedritas, uma das piores montanhas, uma verdadeira parede! O papo estava bom e eu nem sentia o ritmo, poderíamos ter ido até mais rápido se não fosse o meu mal estar, o enjoo. Como senti que estava perdendo o ritmo disse para a Giu seguir com outros competidores, iria diminuir um pouco!
Quase no cume do Pedritas vi que não tinha água pura. Em uma garrafa tinha suplemento e na outra um isotônico, que erro!!! Tinha sede, mas não conseguia beber nem um dos dois. Logo à minha frente estavam os brasileiros Roberto Arneiro, Henrique Alves e Daniel Fonseca. Pedi água e decidi ficar por perto deles... foi aí que não aguentei mais e vomitei!!! Eles me ajudaram muito! É nestas horas que se conhecem as pessoas e o poder da solidariedade, atitudes fundamentais nas ultras!
Quando chegamos ao final da descida, o rio Mineiro cortava a trilha e ao atravessá-lo eu consegui cair! Fiquei com o corpo inteiro na água em um rio que não tinha três palmos de profundidade! Levantei rindo, o que mais eu poderia fazer?
Às 7h o sol ainda não esquentava nada e eu estava encharcada, meu anorak estava do lado de fora da mochila e ficou molhado também. Para minha sorte eu ainda não tinha usado nenhuma das blusas quentes e pude trocar toda a parte de cima. A essa altura eu sentia que estava muito atordoada, talvez pelo frio, mas aos poucos fui reagindo, coloquei luvas mais quentes e também a calça de montanha para me aquecer. As camisetas coloquei dependuradas na mochila, parecia um varal!
Aos poucos o sol foi aquecendo e brilhou forte. A temperatura aumentou bastante. Passei um bom tempo subindo o cerro Estacas e o cerro Clueco, verdadeiras dunas de areia naquele sol escaldante. Já me sentia desidratada e não conseguia engolir nada... A Tomiko Eguchi passou por mim e me deu uma dose de Polihidrat. Na Tapera Linda, já em meio à sombra de árvores o clima ficou mais agradável, mas o corpo fraco, no entanto, dava sinais de que as coisas estavam ficando complicadas: embora o bosque estivesse lindo parecia que não terminava! Como queria chegar ao segundo acampamento, procurei mentalizar e prestar mais atenção na minha respiração para acalmar o estômago e tirar forçar e energia do ar!!!!
Quando no fim desta trilha cheguei ao PC, avisei que não estava bem e um staff me disse que logo chegaria ao segundo acampamento em mais uns 4km. O calor era muito e o acostamento da estrada estava fervendo. Nem pensar em correr, estava no limite das minhas forças, só conseguia molhar a boca e nada mais, meu estômago doía. Um carro parou, era um médico da prova, perguntou se era eu que não estava passando bem, respondi que sim.
Ele disse: entre no carro que te levo!
Eu: não vou entrar pois me desclassificam!
O médico: mas você vai continuar?
Eu: sim!!!!
Ele me escoltou por quase 2km... eu chorava e pensava: QUERO TERMINAR A PROVA!
Cheguei no acampamento e me colocaram no soro. Passei muito frio. Os brasileiros que passavam me davam força. Depois de três bolsas de soro achei que estava de volta. O médico perguntou se eu estava bem e me liberou...
Os brasileiros estavam saindo e decidi ir junto, mal havia percorrido uns 2km e o corpo mostrou que ainda não estava pronto. Parei e me deitei no jardim da frente de uma casa. Quando os moradores chegaram perguntei se podia ficar na varanda da casa, pois era mais aquecida e assim eu estaria em um lugar seguro. Para minha surpresa a dona da casa não deixou, dizendo para eu ficar ao lado do carro pois ficaria mais aquecida. Ri sozinha, para me aquecer alí só se eu entrasse no motor! Sem discutir, entrei no saco de dormir ao lado do carro. A noite estava lindíssima, toda estrelada e muito gelada!!! Claro que não consegui dormir, então decidi voltar ao acampamento e "talvez" desistir! O corpo não obedecia...
Quando estava voltando pela estrada pensei: se vou desistir vou pegar uma carona, já não consigo mais! Acenei para um carro e ele parou. Era da organização, entrei e coloquei o cinto, o carro estava quentinho! Falei que não estava bem e pensava em parar, largar a prova, mas tinha que voltar para Villa La Angostura... Então a moça falou: estou indo para lá, eu te levo! Humm, respirei fundo: Não!!! Vou continuar!!! Desci do carro... e continuei na estrada!
Cheguei no acampamento novamente! Não sabia exatamente o que estava fazendo e pensando. Só tinha uma certeza: queria terminar a prova, chegar à meta!!! Me amontoei no chão com todo povo que ali estava, todos jogados no deck de um pier a beira do lago. Não sei quanto tempo fiquei por ali... quando cheguei da primeira vez era por volta das 20h.
O relógio marcava 6h quando me movimentei, foi impossível dormir! Tomei um café com bolinhos, fiz uns cálculos e vi que se eu saísse para terminar os 50km restantes eu ainda teria mais de 30 horas para finalizar... Decidi: eu vou!!!!
Saí às 6.45h, meio atordoada, beirando o rio e sem achar direito o caminho ... Peguei a estrada e comecei a sentir que o corpo estava melhor. Liguei o Ipod e então a festa começou! A trilha já começava íngreme pelo bosque, era a vez do temível Cerro O`Connor, outra parede! Cheguei lá em cima às 9h, estava claro e consegui ver tudo ao redor da montanha: o lago lá embaixo e a cadeia de montanhas que o cercavam, simplesmente incrível! Lembrei que era meu aniversário! Completava 46 anos, pensei que tinha uma família maravilhosa e que estava fazendo a coisa que mais gosto que é correr em meio a natureza, o que poderia ser melhor que isso? Felicidade total!!!! Plena!!!! Foi um dia muito especial!!!! Sensacional!!! Corria, dançava e cantava pelas trilhas...
As descidas estavam ora divertidas, às vezes areião que afundava o pé, ora eram só pedras, nem tão divertido, mas sim perigoso!
Já não sabia mais onde estava... ninguém no percurso sabia, cada um falava uma coisa, uma montanha diferente, uma quilometragem qualquer. Depois de subir muito, estava certa de que estava no cerro Buol, a última montanha! Então, ao chegar ao final da descida perguntei no PC, quanto faltava. O staff respondeu que apenas faltava o cerro Buol e apontou para uma montanha ao longe altíssima! O Buol era outro!! Decepção total...
Como queria finalizar a prova ainda de dia, encarei firme a subida!!! Quando imaginei ter chegado ao topo, ainda não era a parte mais alta... percorri a crista da montanha subindo e descendo até chegar ao topo. Então veio uma descida muito técnica com muita areia e pedras soltas e por fim o Cajon Negro, um belo bosque que levava de volta à cidade.
Mesmo muito atenta nas marcações, consegui sair da trilha indo parar em uma trilha de montain bike... tive que descobrir para onde ir, pois os caminhos bifurcavam. Saí e voltei para a trilha algumas vezes, mas finalmente cheguei na estrada, onde vi ao longe as fitas de marcação da prova.
Entrei na cidade, coloquei minha bandeira do Brasil no trekking pole e corri até a linha de chegada!!!! Feliz!!!! Feliz!!!
Na chegada estava meu querido marido me esperando ansioso. Logo que passei o pórtico ele me surpreendeu me presenteando com a medalha que havia ganhado no percurso dos 40km, sua primeira prova! Demais!
Bem, é simplesmente inacreditável o que se pode fazer com o poder da mente, mas acima de tudo, em uma ultra, temos que pensar e analisar nosso corpo o tempo todo e não nos arriscar, pois provas existem aos montes, mas nosso corpo é único, nosso maior bem!!!!
O La Mision é mais que uma prova, é uma experiência de vida! Uma autêntica aventura!!!
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